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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Entrevista a Bráulio Mantovani, argumentista de Cidade de Deus e Tropa de Elite

Bráulio Mantovani ganhou notoriedade em 2002, como argumentista de Cidade de Deus (que lhe valeu uma nomeação para o Oscar de Melhor Argumento Adaptado, em 2004), de Fernando Meirelles, e, posteriormente, com os dois filmes Tropa de Elite, de José Padilha. Em Março deste ano, Mantovani esteve em Lisboa, por ocasião do Festival Guiões, onde deu uma masterclass e participou num debate sobre Escrita de Cinema em Língua Portuguesa.


A propósito desta passagem por Portugal, o argumentista brasileiro respondeu a algumas questões do Hoje Vi(vi) um Filme.

Em que momento da sua vida se deu conta de que tinha de ser argumentista?
Bráulio Mantovani: Difícil saber com precisão. Talvez não tenha sido um momento, mas momentos espaçados no tempo. Eu me formei em Língua e Literatura Portuguesas, mas logo no segundo ano da universidade (aos 21 anos) passei a me interessar muito por cinema. Por coincidência, uma amiga e colega de classe, dez anos mais velha que eu, era casada com um director de cinema. Ele tinha uma câmara de vídeo (uma tecnologia que começou a se democratizar no início dos anos 1980). Começamos a fazer trabalhos académicos em vídeo. O director me convidou para trabalhar com ele na montagem de um documentário. O que fizemos foi, de facto, um roteiro de montagem. Logo depois, eu e minha amiga escrevemos para ele um roteiro de ficção para uma curta-metragem e também trabalhamos na filmagem. Acho que ali já percebi que gostava de cinema, mas não de filmagem. Escrever, ao contrário, era sempre um prazer. Acho que essa foi a primeira faísca. Mas só percebi que poderia ser guionista quando comecei a ganhar dinheiro escrevendo vídeos empresariais (institucionais, vídeos de treinamento). Os assuntos eram tediosos, mas trabalhar em casa e ser mais ou menos dono do meu tempo compensavam. Mas foi um longuíssimo passo entre esse momento e o meu primeiro trabalho profissional como guionista de longa-metragem: Cidade de Deus. A partir desse filme, ficou claro para mim que escrever ficção para cinema é a minha vocação. A única coisa que sei fazer sem passar vergonha.


Qual é a importância de um roteiro em língua portuguesa ter sido nomeado para o Oscar de Melhor Argumento Adaptado? Como se chega lá?
Bráulio Mantovani: Do ponto de vista pessoal, mudou minha vida. Mas a importância, no Brasil, foi também imensa. Essa indicação ajudou a mudar a maneira como não apenas o mercado mas também o público entendia o roteiro. Virou assunto. Foi uma grande sorte para mim, mas também foi muito bom para o conjunto dos guionistas no Brasil. O facto de ser o guião de um filme falado em português sem dúvida aumenta muito o impacto da indicação. Mas não me peça para dizer como se chega lá porque não tenho a menor ideia de como cheguei lá. Não foi apenas mérito do guião, que passaria despercebido se não fosse o trabalho do Fernando Meirelles e todos os talentos envolvidos no filme. Cidade de Deus juntou muita gente boa. E deu muito certo. Eu nunca escrevi nada tão bom depois de Cidade de Deus, o que prova ser impossível para mim dizer como se chega lá. Se soubesse, teria ido outras vezes.

Contou que nunca esperou o tão grande sucesso de Cidade de Deus e de Tropa de Elite. Porque pensava assim?
Bráulio Mantovani: O filme é muito violento e, naquele momento, apenas um actor de todo o elenco era conhecido. Mas talvez houvesse um certo preconceito da minha parte. Eu achava (como ainda acho) o filme tão bom que, para mim, não poderia fazer sucesso, como se sucesso fosse algo alheio à qualidade artística. Mas não sei se foi isso. Era uma intuição. Felizmente, muito errada.


Como é sentir o reconhecimento do público?
Bráulio Mantovani: O reconhecimento do público mobiliza em nós um sentimento que certamente não está na lista dos mais nobres: a vaidade. Não se pode negar que o sucesso alimenta a vaidade. Mas acho que não se trata apenas disso. Qualquer trabalho criativo demanda um enorme esforço, muitas tentativas e erros, uma omnipresente sensação de insegurança (nunca sabemos se o nosso trabalho está ficando bom ou ruim). Viver da escrita é bom, mas é também uma fonte permanente de ansiedade e sofrimentos correlatos. Raramente proporciona segurança financeira. Então, sentir o reconhecimento do público é também se permitir reconhecer-se a si próprio como o vencedor de uma dura batalha. Quando não se perde a saudável humildade, o sucesso alimenta mais o desejo de criar e auto-exigência que a vaidade (sem anulá-la), obviamente.

Trabalhou várias vezes com Fernando Meirelles. São de esperar mais filmes em parceria para breve?
Bráulio Mantovani: Escrevi dois outros roteiros para o Fernando filmar, mas que por razões diversas não foram produzidos. Agora, estamos começando a trabalhar em uma nova ideia. Quem sabe desta vez dá certo. Fernando é um grande parceiro.

Quais os seus próximos projectos?
Bráulio Mantovani: Eu nunca falo sobre novos projectos, pois não sei se vão dar certo. Sempre há muitos. E poucos vão para a frente. Por isso, prefiro não comentar-los.

No festival Guiões, falámos da facilidade com que Portugal recebe produções brasileiras e como o inverso não acontece. Acha que alguma vez isso vai mudar? E qual será o primeiro passo para a aceitação de produções portuguesas no Brasil?
Bráulio Mantovani: O mercado brasileiro não anda generoso nem mesmo com os filmes feitos aqui. Mas eu espero que Portugal comece a produzir séries. Com as plataformas de streaming, as produções portuguesas teriam mais chance de conquistar o público brasileiro. Que venham as séries!


Qual o filme da sua vida?
Bráulio Mantovani: Não saberia dizer. Teria que fazer uma longa lista que iria de Os Dez Mandamentos a Escola de Rock, passando é claro por Cidadão Kane [Citizen Kane], O Meu Tio da América, Estrada Perdida, Terra em Transe… Diferentes filmes tiveram diferentes impactos em diferentes momentos da minha vida. Escolher um seria trair muitos.

E dos argumentos que escreveu, qual se tornou no seu filme favorito?
Bráulio Mantovani: Cidade de Deus, e duvido que haja outro no futuro que me faça mudar de opinião.

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