quinta-feira, 26 de março de 2020

Crítica: A Fábrica de Nada (2017)

"Nós decidimos que não deixamos entrar ninguém."


*8/10*

A Fábrica de Nada é uma obra inesperada no panorama do cinema português, que aborda a crise financeira de modo nunca antes visto: sem negativismo, explorando novas oportunidades, e deambulando entre realidade e ficção. 

O realizador Pedro Pinho reinventa-se a si próprio ao longo das quase três horas de filme, a par dos trabalhadores que homenageia. A Fábrica de Nada parte de uma ideia original de Jorge Silva Melo, e inspira-se no caso real, da fábrica Fatileva, autogerida entre 1975 e 2016, bem como na peça da holandesa Judith HerzbergDe Nietsfabriek.

Uma noite um grupo de operários percebe que a administração está a roubar máquinas e matérias-primas da sua própria fábrica. Ao decidirem organizar-se para proteger os equipamentos e impedir o deslocamento da produção, os trabalhadores são forçados - como forma de retaliação - a permanecer nos seus postos, sem nada que fazer, enquanto prosseguem as negociações para os despedimentos. A pressão leva ao colapso geral dos trabalhadores, enquanto o mundo à sua volta parece ruir.


Se o capitalismo destrói, também é uma espécie de capitalismo que motiva os trabalhadores a não desistirem. E os debates politico-sociológicos sucedem-se, intercalados com a realidade dolorosa de quem sofre na pele o ciclo vicioso a que a economia conduz. Se, por um lado, os intelectuais discutem vários pontos de vista, mais ou menos ideológicos, são os trabalhadores resistentes que actuam para não se renderem à impotência e à depressão.

Há uma magia dentro das paredes daquela "fábrica de nada" que os patrões quiseram encerrar. Magia que só se manifesta na presença dos operários, que os inspira e nos contagia no espírito inventivo. Eis a crise avaliada por um prisma completamente diferente, dinâmico e inesperado, com a ficção e a realidade a abrirem fronteiras, comungando de forma espirituosa. Pedro Pinho filma tudo em película de 16mm, numa proximidade de parceiro, quer na fábrica, quer na vida familiar ou na paisagem da Póvoa de Santa Iria, entre o abandono e a produção de tempos idos, entre a natureza, os animais e o rio, numa espécie de naturalismo industrial.


E assim nasce a obra e a esperança, que o ânimo transforma num número digno de um musical de Hollywood, com canções e coreografias adequadas à realidade fabril. Actores profissionais e amadores juntam-se para criar um filme totalmente fora do sistema, com espírito interventivo mas, mais ainda, criativo. Uma lufada de alento, em tempos sombrios.

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