sábado, 28 de março de 2020

Entrevista: João Nuno Pinto, realizador de Mosquito

Em Janeiro de 2020, Mosquito, de João Nuno Pinto, abriu o Festival Internacional de Cinema de Roterdão e não passou despercebido. A estreia em Portugal aconteceu a 5 de Março e, pouco tempo depois, os cinemas nacionais fecharam devido à pandemia que assola o globo. Em tempos difíceis, será na plataforma de VoD Filmin que o público poderá dar a Mosquito a atenção que ele merece. O filme estará disponível a partir de 3 de Abril. A crítica do Hoje Vi(vi) um Filme pode ser lida aqui.

A propósito desta estreia online, falámos com o realizador João Nuno Pinto:


A estreia de Mosquito coincidiu com a chegada do Covid-19 a Portugal, por isso a estadia em sala de cinema foi curta. Face aos acontecimentos, surgiu a notícia de que o público nacional poderá ver o filme a partir de 3 de Abril na plataforma Filmin. Em tempos excepcionais, há que saber adaptar-se. Como tens vivido tudo isto?

João Nuno Pinto: Tem sido uma montanha russa de emoções. Depois de mais de 7 anos de dedicação ao projecto, de sucessivos adiamentos e dificuldades financeiras para levar o filme avante, de finalmente conseguir terminar-lo e ser seleccionado para abrir o Festival de Roterdão, da recepção muito positiva que recebeu lá, tanto por parte da crítica como do público, as minhas expectativas para a estreia em sala eram as melhores. Só que é isso, coincidiu com a estreia do Corona Vírus em Portugal e o pior fim-de-semana de bilheteira do ano. Logo a seguir os cinemas fecharam e assim terminou a sua efémera passagem em sala. Só em Roterdão, o filme teve mais de 3000 pessoas a assistir na sua noite de estreia. Em Portugal, não deve ter feito esse número nas duas semanas que esteve em sala. Claro que foi com muita tristeza e angústia que vivi tudo isto. O filme foi pensado como uma experiência multi-sensorial que só uma sala de cinema ou um bom home-cinema pode proporcionar, mas infelizmente vai ser visto no computador por muita gente. É a realidade actual e temos que saber adaptar-nos e viver com isso. O importante é que chegue ao maior número de pessoas.


Sobre o filme, inspiraste-te na história do teu avô e fizeste uma longa-metragem sobre a Primeira Guerra Mundial, tema muito poucas vezes abordado no Cinema. Como surgiu esta ideia? E, posteriormente, a oportunidade de fazer o filme?

João Nuno Pinto: Nunca conheci o meu avô. Quando eu nasci ele já tinha falecido há muito tempo. Ele tinha sido o patriarca da família, havia um enorme respeito, admiração no seio da família e muitas histórias eram contadas. Ele era um espírito livre, quando jovem tinha-se metido em inúmeras aventuras, fugiu com a minha avó para se poderem casar, meteu-se em várias revoluções, esteve preso nos Açores, e acabou por voltar a Moçambique, onde tinha estado durante a Primeira Guerra Mundial. De todas as histórias que escutava, essa sempre foi a que me fascinava mais: este jovem que quer ir para a guerra a todo o custo, quer ir combater os alemães em França, é enviado para Moçambique, apanha malária, é deixado para trás, e parte sozinho à procura do seu pelotão numa África ainda bastante virgem e cheia de perigos (as doenças tropicais, a falta de água salubre, os animais selvagens, as tribos hostis à colonização e a ameaça alemã). Segundo a lenda familiar ele percorreu mais de 2 000 quilómetros mato adentro à procura da guerra. Imaginem um jovem de 17 anos, vindo da sua aldeia no Norte de Portugal, atravessar Moçambique sozinho, há 100 anos, ainda mais acometido pelas febres da malária. Do que aconteceu nessa viagem há muitos poucos relatos, mas deve ter sido simultaneamente aterrador e fascinante para mais tarde ele ter voltado para lá e criado sete filhos. Foi graças a essa odisseia que o meu pai e, depois, eu e os meus irmãos, nascemos em Moçambique. Talvez o meu interesse inconsciente nesta história tenha sido a necessidade de uma espécie de terapia regressiva, uma tentativa de entender as minhas origens.

E é impossível não falar disso sem abordar a questão da colonização e confrontar a nossa herança colonial. E é claro, que quando começo a estudar e pesquisar o que se passou na época, o horror e desumanidade daquela guerra e como foi propositadamente apagada dos livros de História pela censura do Estado Novo, mais urgência eu sentia em fazer este filme e contar esta história, que já tinha na cabeça mesmo antes de filmar o América, mas não me sentia ainda preparado para a abraçar. Não queria que fosse o meu primeiro filme. Mais tarde chegou o momento. Primeiro com a Fernanda Polacow (guionista, socióloga, pesquisadora), começamos a pensar o filme juntos. Depois surge o Paulo Branco, que tinha visto o América e queria produzir o meu próximo filme. Falo-lhe da ideia, mas que para a podermos desenvolver e escrever o guião precisamos de ir a Moçambique fazer pesquisa no terreno. E é aí que entra o Paulo como produtor: ele financia a nossa viagem a Moçambique, onde percorremos mais de 5000 quilómetros de Sul a Norte, do Índico ao Lago Niassa, reconstruindo o percurso do meus avô e das tropas portuguesas, fazendo entrevistas no terreno e tentando entender o lado africano desta história toda. A partir daí foi pôr as mãos à obra, fazer uma pesquisa exaustiva sobre o que aconteceu realmente naquele momento singular da nossa História, finalizar o guião, conseguir financiamento, viajar várias vezes para Moçambique para pesquisar os locais de filmagem e possibilidades de parcerias de produção, enfim, o normal num filme desta envergadura. O que não foi normal foram os sucessivos atrasos das filmagens devido aos conflitos em Moçambique, que explodiram exactamente quando íamos iniciar as filmagens, e que nos obrigaram a passar as filmagens para o Sul e Centro do país em vez do Norte, onde inicialmente estava previsto. E isso obrigou a novas viagens a Moçambique, nova preparação e adaptação do guião aos novos locais.


Em Moçambique, as filmagens aparentam ter sido duras. Foi mesmo assim? Que momentos guardas dos tempos de rodagem?

João Nuno Pinto: Foram duras, exaustivas e com condições muito precárias. Sendo o filme uma espécie de road movie caminhante, a paisagem tinha de estar sempre a mudar consoante o percurso do personagem. Mas essa mudança de ambiente não era aleatória: há uma lógica geográfica realista, mas há também um lado metafórico onde o espaço físico funciona como reflexo do estado psicológico e emocional do protagonista, Isso obrigou-nos a quase dois meses de filmagem sempre em movimento, milhares de quilómetros de 4x4 em caminhos de terra, algumas viagens de avião, outras de barco, dias e dias a acordar de madrugada e a deitar tarde, noites mal dormidas em lugares bastante precários, sob um sol impiedoso e a ameaça real da malária, de cobras, aranhas e outros animais peçonhentos do mato. Felizmente, tirando alguns acidentes menores, e algumas idas ao hospital ou enfermaria, nada de grave aconteceu a ninguém da equipa. Eu cheguei a ser mordido por algum bicho estranho mas felizmente foi ainda na preparação do filme e véspera de embarcar para Lisboa. Quando cheguei a Portugal fui acometido por uma violenta febre e tratado imediatamente no hospital. Apenas fiquei com a marca da mordida no tornozelo (uma marca da “minha” guerra que levo para a vida). Mas essa violência física já era esperada e fomos preparados para a imprimir no próprio filme. Filmes como Aguirre, de Werner Herzog, ou Apocalipse Now, que se aventuraram no mato ou na selva, passaram por essa provação, onde a audácia humana é posta à prova pela impiedade da natureza. A obsessão dos seus personagens confunde-se com a obsessão dos seus realizadores. Ficção e realidade se fundem numa metalinguagem do próprio filme. Isso acontece nesses filmes e acontece também no Mosquito. Mais do que fugir a essas dificuldades, a minha intenção foi abraça-las e absorve-las ao máximo para que isso ficasse impresso, se tornasse experiência vivida pelo espectador. E essa consciência esteve por trás de certas escolhas cinematográficas ou no desempenho dos próprios actores, principalmente do João Nunes [Monteiro], que foi para lugares de exposição e entrega, que dificilmente teria ido em outras condições.

Como se deu a escolha do protagonista? O João Nunes Monteiro tem um aspecto mesmo muito jovem e revela uma maturidade impressionante...

João Nuno Pinto: O meu avô era um homem grande e orgulhoso. A sua audácia vinha da consciência da sua própria força física. E era essa personagem que eu buscava quando começámos o casting. Quando surge o João Nunes, vejo um rapaz que é fisicamente o oposto do meu avô, um rapaz franzino mas que tem todas as outras qualidades que procurava: um ar de garoto inocente mas com uma enorme força interior. A questão da inocência era fundamental pois é isso que faz com que o espectador crie empatia com o personagem, apesar de todas as suas atitudes menos louváveis ao longo do filme. E depois tem essa parte de ter um actor capaz de metamorfosear essa inocência na amargura da experiência e da dor. E o João Nunes tem isso dentro dele. Ele consegue trabalhar o seu corpo para o levar aos limites da fisicalidade sempre dentro do espontâneo e genuíno. A grande questão era mesmo a diferença entre o que era o meu avô e a imagem de força que eu tinha dele e a fragilidade física do João. Mas tendo eu já nessa altura me afastado da história original do meu avô, já não se tratava da sua história mas sim uma alegoria sobre a guerra e a nossa herança colonial, rapidamente me apercebi que era muito mais forte que o protagonista fosse fisicamente pequeno e frágil em contraste com o tamanho do seu orgulho e obsessão. Interessava-me mais o anti-herói do que o herói. Uma espécie de David que se propõe fazer a jornada de Ulisses. E nesse aspecto o João foi gigante, leva o filme às costas, com uma maturidade reservada apenas aos grandes actores.


Entre América e Mosquito, contam-se 10 anos. Nos dois filmes, consegues tratar de temas muito duros com um certo realismo mágico à mistura. Podemos considerar essa característica como tua marca autoral?

João Nuno Pinto: Até agora parece que sim, mas vamos ver se o próximo projecto confirma a regra ou não… acredito no cinema como um espelho da nossa sociedade, uma reflexão sobre o momento em que vivemos, uma memória colectiva que nos define enquanto povo. Faz parte da construção da nossa identidade. E por isso é que, até agora, me tem interessado falar da sociedade portuguesa, que é algo que posso falar e reflectir com alguma propriedade. Em América, sendo o meu primeiro filme, tentei fazer o filme que gostava de assistir. Acaba por haver, na sua idealização, uma visão de fora para dentro: que tipo de cinema eu quero fazer para trabalhar naquele material que era o guião. No Mosquito as coisas invertem-se: o trabalho é de dentro para fora. Começa na ideia do filme, depois no guião e segue na busca da melhor forma de o contar. América olha para a Portugal através dos olhos dos seus imigrantes ilegais, é um filme sobre a esperança, ou a falta dela, num momento em que Portugal era visto como um El Dorado de oportunidades para muitos imigrantes do leste europeu, África ou Brasil; Mosquito fala sobre a nossa herança colonial, em como, ainda hoje, tratamos das questões raciais e lidamos com o nosso passado ultramarino, condicionados por uma construção narrativa enviesada por séculos de doutrinamento. Mosquito é um filme de época, passa-se à 100 anos, mas é extremamente actual nas questões que levanta, e é isso que o torna tão pertinente perante o público que assiste. Em relação ao realismo mágico, sempre foi um dos géneros que mais me fascinou na literatura. O Galo de Ouro, de Juan Rulfo, ou A Espuma dos Dias, do Boris Vian, foram livros que marcaram a minha juventude. Gosto dessa mistura entre a realidade e a possibilidade do sonho, da metáfora visual para explicar o não explicável. Em América, os efeitos na terra daquela traineira caída do céu, são inspirados no El ángel exterminador, de Luis Buñuel. A narrativa daquela imagem é entendida com muito mais força e fascínio do que se tivesse sido verbalizada. Já no Mosquito, o seu surrealismo é um pouco mais contido, navegando num limbo entre a realidade e os delírios de uma mente enferma pelas febres da malária, e a sua inspiração vem da mitologia e signos africanos, especialmente da tradição mística Macua, onde a história se passa.

Tens já novos projectos em mente?

João Nuno Pinto: Tenho vários. Só espero que nenhum demore tantos anos a ver a luz do dia, ou de um projector numa sala de cinema.

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