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quarta-feira, 1 de julho de 2020

Crítica: Faz-me Companhia (2019)

"Achas que se pode morrer num sonho?"
Clara


*7/10*

Não são muitos os títulos nacionais do género de terror - em especial, ao olharmos para os anos mais recentes - e Faz-me Companhia, de Gonçalo Almeida, chega às salas para inverter a maré. Um filme com conteúdo, que respira ideias e influências, e capaz de incomodar e fazer pensar.

Apenas duas actrizes e uma casa alugada - ela própria uma terceira personagem -, eis alguns dos elementos que destacam, desde logo, Faz-me Companhia, conferindo-lhe alguma singularidade: um foco imenso no sexo feminino.

Sílvia (Cleia Almeida) aluga uma casa para o fim-de-semana, no sul de Portugal, com a intenção de se encontrar com a sua amante secreta, Clara (Filipa Areosa). Entre mergulhos na piscina e banhos de sol, o fim-de-semana perfeito a duas começa a ser perturbado por um mal misterioso. Estranhos eventos ocorrem na casa e terão um impacto permanente na relação e na vida das duas mulheres.


Gonçalo Almeida chamou as atenções em 2017, no MOTELx, onde o seu filme Thursday Night, conquistou o Prémio para Melhor  Curta-metragem Portuguesa. Agora, na sua primeira longa, a ideia do fantasma ou assombro continua presente, juntando-lhe personagens humanas (depois dos cães da curta) e os seus medos.

Faz-me companhia parte de uma história simples e pouco previsível, para aprofundar ideias fortes em redor da Mulher e da Maternidade. Temos duas personagens femininas, uma delas está grávida (Cleia Almeida estava mesmo grávida durante as filmagens), e para além da relação amorosa secreta e das diferenças entre as duas mulheres, os objectivos de vida de cada uma delas parecem ser inconciliáveis. Ainda assim, aquele fim-de-semana poderia ser uma forma de reaproximação.

O local isolado onde as duas se encontram, uma casa, a sua piscina e jardim envolvente, onde se destaca uma árvore em especial, surge como uma terceira entidade feminina presente e capaz de influenciar a presença humana. A casa parece ter uma espécie de útero, tal como aquelas mulheres, e uma vida pulsante, que se reflecte na bomba da piscina, e no barulho que se ouve vindo da casa das máquinas. O realizador mostra-nos, por diversas vezes, as entranhas daquele lugar e esta comparação, não sendo óbvia, torna-se inevitável.


A par do ambiente sinistro - bom trabalho da direcção artística, em alguns detalhes do quarto, onde para além do cavalo de baloiço vemos que também existe um berço -, as noites são mal dormidas, atormentadas por pesadelos, sonhos lúcidos e até um estado de sonambulismo/transe - e a montagem joga bem com esta dualidade sonho/realidade. Enquanto Sílvia parece manter-se mais racional, Clara depressa começa a manifestar comportamentos estranhos. A gravidez de Sílvia (e alterações hormonais que vêm com ela), as incertezas e inseguranças mútuas, o ambiente desconhecido, tudo potencia o estado de paranóia para que as duas mulheres caminham.

As cores também parecem simbólicas, com a predominância do vermelho sangue, em especial após a chegada de Clara, e quase sempre associado à sua personagem, seja no bikini que veste, na bebida que toma, ou no sangue que lhe escorre do nariz, mas também na iluminação de algumas cenas ou de alguns locais - a casa das máquinas, claro.


As duas actrizes são capazes de conduzir o filme, com papéis muito físicos e psicologicamente exigentes. Cleia Almeida, com a experiência adicional de rodar grávida um filme de terror, revela maturidade e segurança na sua personagem; e Filipa Areosa, mais habituada à televisão, mostrou-se capaz de revelar outra faceta, mais corajosa. Faltou um pouco mais de química entre as duas actrizes, mas tudo se constrói, e sabemos que em Faz-me Companhia a relação de Sílvia e Clara está tremida.

Uma surpreendente estreia de Gonçalo Almeida nas longas-metragens, um novo fôlego para um género e bom auguro para próximos trabalhos. 

4 comentários:

ArmPauloFerreira disse...

Fiquei curioso e fui procurar pelo trailer.
Vi um do Motelx. Gostei e fiquei cativado em vir a descobrir este filme português.
O mais interessante é que a tua critica alimenta a promessa do que vi do trailer. A classificação dada aqui ainda mais... mas antes já havia esbarrado em uma ou duas cine-criticas (creio que principalmente do Hugo Gomes) onde se abatia o filme completamente como se tivesse Covid.
Um dia se conseguir, verei... despertou-me a atenção.

Inês Moreira Santos disse...

Já se sabe que cada um tem o seu gosto e opinião, mas eu vejo muito potencial. Pode não ser um filme perfeito, mas ideias não lhe faltam. :) Quando puderes, vê.

Cristina Weber disse...

A minha opinião, que vi o filme, identifica-se completa com a crítica da Inês Moreira Santos. Portugal está a crescer em qualidade, até no cinema.

Inês Moreira Santos disse...

Cristina, obrigada pelo comentário. É verdade. É bom ver o cinema português em grande forma, ainda mais no cinema de terror. :)