Páginas

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Crítica: Sirât (2025)

"Aquí solo hay polvo" ("Aqui só há poeira")
Luís


*9.5/10*

Sirât convida a uma violenta travessia no deserto, com música trance para apaziguar a dor. Oliver Laxe dá um forte abanão à plateia, que precisava mesmo de um filme como este (mesmo que ainda não se tenha apercebido).

"Um homem e o seu filho chegam a uma rave perdida no meio das montanhas áridas e fantasmagóricas do sul de Marrocos. Procuram Marina, a sua filha e irmã, desaparecida há meses numa dessas festas intermináveis e sem descanso. Rodeados por música electrónica e por uma sensação de liberdade crua e desconhecida, mostram a sua fotografia vezes sem conta. A esperança começa a desaparecer. Empurrados pelo destino, insistem e seguem um grupo de ravers a caminho de uma última festa no deserto. Talvez Marina lá esteja. À medida que se aventuram mais adentro do deserto escaldante, a viagem obriga-os a confrontar os seus limites."


Depois de O Que Arde (2019), um retrato dos incêndios em Espanha, muito semelhantes aos que têm assolado também o território nacional, o realizador muda de rumo e entra no universo das raves e de quem as vive como se fosse o último alimento possível para a alma. Naquela realidade, o protagonista, um pai espanhol em Marrocos, é um estranho em terra estranha, tal como a plateia.

Este convite de Oliver Laxe para entrar na rave - e na road trip que se segue -, juntamente com as personagens, torna a relação do espectador com Sirât tudo menos impessoal. Há uma aproximação, em especial ao pai (grande interpretação de Sergi López) e ao filho, que se estende aos restantes companheiros de viagem, à medida que se vão dando a conhecer. Há um inesperado envolvimento emocional da plateia com a trama, como poucas vezes acontece em Cinema.

Mas é quando a festa é interrompida, devido a um repentino "estado de emergência" no país, assombrado por uma suposta guerra mundial, que as regras se quebram e se unem esforços, na procura pela filha e pela próxima rave, algures no deserto, rumo a Sul, até perto da Mauritânia. Pelo sinuoso caminho, o grupo quer desligar-se do mundo real, mas as notícias chegam aos poucos, incompletas e alarmantes.


E eis que começa uma travessia no deserto (quase religiosa - seja no Alcorão ou na Bíblia), com perigos inesperados e provações atrozes. No islão, associamos o deserto ao local de oração e de revelações para Maomé. Por outro lado, na Bíblia, estão os 40 dias e 40 noites que Jesus passou no deserto, onde é repetidamente tentado pelo Diabo (para além da travessia do deserto feita por Moisés e os hebraicos na fuga do Egipto, que não se aplica especialmente, neste filme). É esse o caminho tentador e extremamente perigoso que as personagens terão de percorrer para alcançarem o seu objectivo - uma espécie de Revelação. No islão, a palavra Sirât remete para a ponte mais fina que um cabelo e mais afiada que uma espada que liga o Inferno ao Paraíso. Este filme é símbolo dessa passagem.


A enormidade das paisagens, com deserto a perder de vista e montanhas rochosas de cores quentes e vibrantes, captadas em película de 16mm, condiz com a grandeza de Sirât, numa experiência sensorial que não se fica pela direcção de fotografia ou pela narrativa. A música trance, que acompanha a plateia e as personagens desde a rave até à última cena, entra pelos poros da pele e marca o ritmo da tensão e do coração de quem se aventura nesta longa-metragem. As gigantescas colunas de som que surgem, logo no início de Sirât, no meio do deserto, lembram o monolito de 2001 - Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e podem ser entendidas dentro da mesma ideia de evolução e transcendência que o filme de 1968. Aqui o que muda, principalmente, é o contexto, mas o significado e a imponência da imagem são muito semelhantes.


Na sua aparente superficialidade e choque, Sirât é um convite à reflexão sobre os traumas, a guerra e o actual estado do Mundo (e como se chegou até aqui), mas igualmente sobre a perda, o real sentido da vida e o que é, afinal, para cada um, o fim do mundo. Porque a aparência árida esconde sentimentos, História e muito sumo. A música e a dança são a cura para a dor de muitos - neste filme e na vida real. Mas o que leva realmente alguém a viver de rave em rave pelo deserto? E quão grande é o desespero de um pai para se aventurar com o filho adolescente por esse mundo tão à parte, em busca da filha desaparecida? Estas são as questões primordiais que Oliver Laxe lança à plateia no convite a uma reflexão muito mais profunda.

Sem comentários:

Enviar um comentário