sexta-feira, 16 de maio de 2025

IndieLisboa 2025: Duas Vezes João Liberada / Two Times João Liberada (2025)

"Não me faz sentido nenhum fazer isto à personagem... Desculpem."

João

*9/10*

Duas Vezes João Liberada marca a estreia de Paula Tomás Marques nas longas-metragens, após uma muito prometedora filmografia de curtas. 

No seguimento do que já aconteceu em Dildotectónica (2023), Paula volta a criar uma personagem ficcional, construída através de registos reais. Sem medo de correr riscos, a realizadora quebra e desmistifica tabus, ao mesmo tempo que a inspiração histórica - com a personagem de Liberada a nascer a partir de uma vasta investigação da realizadora e da protagonista June João (que assinam o argumento em conjunto) nos registos da Inquisição em Portugal e relatos de historiadores - torna tudo ainda mais mágico e entusiasmante.

"João, uma actriz lisboeta, protagoniza um filme histórico biográfico sobre Liberada, uma jovem dissidente de género perseguida pela Inquisição. Após o realizador do filme ficar misteriosamente paralisado, João é assombrada pelo espírito da personagem."

Eis que Duas Vezes João Liberada mostra o filme dentro do filme, guiado por uma metanarrativa, com nuances históricas e uma desmistificação da dissidência de género ao longo dos séculos. A desconstrução dos acontecimentos é feita de forma competente e cativante, revelando os bastidores da rodagem do filme sobre Liberada e a divergência de pontos de vista entre realizador e actriz principal. Aí, entra em acção um elemento terror/fantástico: o fantasma da "verdadeira" Liberada a assombrar a equipa de filmagens, mas principalmente, João (numa excelente prestação de June João) e o realizador.

É como se apenas João fosse capaz de compreender qual é a correcta representação, a partir do Presente, de uma (suposta) figura histórica. É também isso que Paula Tomás Marques pretende fazer com esta personagem fictícia, que poderia representar outras que realmente existiram, mas sobre quem não se sabe toda a história e, como tal, seria impossível replicá-las dignamente. É fundamental deixá-las livres de preconceitos.

Sem apoios financeiros públicos, a equipa de Duas Vezes João Liberada criou uma obra notável, com grande empenho e entreajuda de todos os elementos. Paula Tomás Marques optou por filmar em película de 16mm, o que confere ainda maior magia à longa-metragem. Se, por um lado, toda a equipa pôde experienciar a necessidade de economia que a fita exige, verdade é que o resultado é surpreendente, com planos exemplares e um trabalho que tira o maior partido da luz e cores. Ao mesmo tempo, a montagem e os efeitos visuais práticos funcionam com uma naturalidade que torna a assombração ainda mais "realista".

Na sua primeira longa-metragem, Paula Tomás Marques mostra, cada vez mais, uma enorme criatividade e inteligência na abordagem dos temas que têm caracterizado o seu trabalho. Não falta algum humor, uma fantasma que sabe o que quer e muito respeito pelas pessoas queer e dissidentes de género que ficaram registados na História.

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