sexta-feira, 31 de março de 2017

Crítica: Aquarius (2016)

"Há pessoas com nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração"
Clara (trauteando canção de Paulinho da Viola)

*9/10*

E quando a doença não é física, mas social? Kleber Mendonça Filho responde com Aquarius. Um filme que se foi tornando mais político com o passar do tempo e com as mudanças na governação brasileira. Um retrato de uma sociedade, onde injustiça e desigualdade imperam.

Clara (Sonia Braga), uma viúva de 65 anos, crítica de música reformada, nasceu numa família rica e tradicional no Recife, Brasil. Ela é a última residente do Aquarius, um edifício construído nos anos 40, na zona cara junto ao mar da Avenida Boa Viagem, no Recife. Todos os apartamentos vizinhos já foram adquiridos pela empresa que apresentou projectos para construir um novo empreendimento. Clara jura que só sairá dali morta e entra numa guerra fria com a empresa, num confronto obscuro e emocionalmente desgastante. Esta tensão não só perturba Clara como torna as suas rotinas exasperantes, levando-a a reflectir sobre si e aqueles que ama, o seu passado e o seu futuro.


Clara é o Brasil ameaçado, destroçado. Sonia Braga é a mulher assombrada pela morte, mas que vive a vida com tudo aquilo a que tem direito. Apesar de tudo, os perigos aumentam e a vigília constante torna-se incomportável. Um conflito terrível toma conta da protagonista, mas também da plateia que se vê a recear pela segurança de ClaraAquarius é uma perseguição, uma sociedade sem rei nem roque, onde ainda há resistentes que clamam pela justiça.

Aquarius é uma metáfora fabulosa do seu país de origem: incómodo, directo, batalhador, desafiador. O filme alimenta-se de um realismo cru, de um retrato de uma mulher reformada, inteligente e culta - cultura sempre foi a sua vida -, agora assombrada pela pressão da especulação imobiliária. Mas ao real adiciona-se uma pitada de fantasia e aí surge uma magia ainda maior. A cómoda - metafísica - que está naquela sala há tantas décadas, testemunha silenciosa de alegria, prazer ou mágoas, invoca o passado que agora Clara recorda, agora, na eminência de lhe roubarem a casa que guarda todas as memórias da família. O cabelo da protagonista - curto em jovem, comprido e forte aos 65 anos - é outro dos grandes símbolos da longa-metragem, conferindo uma personalidade ainda mais vincada a Clara.


Kleber Mendonça Filho atinge o seu esplendor neste filme com Sonia Braga. A atenção ao detalhes, a janela de onde tudo vemos, muitas vezes mais que a protagonista. Vemos os que amam, os que se divertem, a praia e o mar, a rua movimentada, os intrusos no prédio de Clara. O realizador filma muitas vezes com um certo espectro fantasmagórico a pairar, seja pelas portas entreabertas que escondem segredos escabrosos ou apenas o vazio, seja pelas faixas de pano que balançam ao sabor do vento no prédio do lado, qual fantasma a descer dos céus.

Aquarius divide-se em três partes e as opções de montagem funcionam na perfeição para criar algum suspense e imprevisibilidade no desenlace da acção. A acompanhar, a banda sonora contagiante e de excelente gosto, ou não fosse a personagem principal uma crítica de música.


Sonia Braga é a heroína, a força da Natureza que mergulha nas águas agitadas das praias do Recife, admirada por todos, com a energia e vontade de viver de uma jovem. Clara quebra tabus e contraria estereótipos e a actriz parece ter nascido para a interpretar.

Aquarius é um alerta corajoso sobre um Brasil triste e receoso. Kleber Mendonça Filho veio marcar a História do cinema brasileiro com um filme tão mágico quanto cruel, mas cheio de verdade. E que bom é ver Sonia Braga novamente na ribalta.

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