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quarta-feira, 14 de junho de 2023

Opinião: Livro - O Sr. Wilder & Eu, Jonathan Coe

O realizador Billy Wilder é personagem secundária mas fulcral no romance de Jonathan Coe, O Sr. Wilder & Eu. Actualmente, Stephen Frears encontra-se a desenvolver uma adaptação cinematográfica deste livro.

Sinopse: "Aos 57 anos, a vida de Calista Frangopoulos parece ter chegado a um impasse pessoal e profissional. À partida de uma das filhas para um país longínquo e ao complexo dilema com que a outra se debate, soma-se o pouco trabalho que tem tido enquanto compositora de bandas sonoras. É no meio deste caos que recorda a sua própria juventude e os tempos passados com o grande realizador de cinema Billy Wilder.

Em 1976, por mero acaso, Calista dá por si em Los Angeles, num requintado jantar com grandes figuras do cinema, entre elas Wilder, que acaba por contratá-la como intérprete durante a rodagem do filme O Segredo de Fedora, numa belíssima ilha grega.

E assim, ao lado de um dos maiores nomes da sétima arte, numa ímpar jornada de aprendizagem e crescimento, Calista conhece os últimos momentos de uma forma de fazer cinema que então chegava ao fim. Ao mesmo tempo, começa a traçar o seu próprio caminho, descobrindo não apenas o amor, mas também os traumas privados e colectivos que o Holocausto deixou.

Num romance que evoca a passagem da juventude à idade adulta e faz o retrato íntimo de uma das mais intrigantes figuras do cinema, Jonathan Coe lança o olhar sobre a natureza do tempo e da fama, da família e da atração traiçoeira que a nostalgia consegue exercer sobre cada um de nós."

O Sr. Wilder & Eu lê-se de um trago. Delicioso e viciante, o livro transporta o leitor para o centro da azáfama das filmagens de O Segredo de Fedora. O impasse da vida da protagonista Calista, aos 57 anos, é uma história secundária quando comparada com as suas nítidas memórias de Billy Wilder, que agora reaviva, e são a principal linha narrativa. 

Sabemos que estamos a ler ficção, mas Jonathan Coe consultou múltiplas fontes, quer livros, artigos ou entrevistas, pessoas que conviveram com o realizador e muito do que ali está ficcionado tem mais de realista do que pode parecer. E eis que, inesperadamente, a certo momento do livro, Coe oferece-nos uma história que Wilder conta à audiência em jeito de guião. Provavelmente, o momento mais duro deste romance.

Ao ler O Sr. Wilder & Eu, sentimo-nos íntimos do cineasta, compreendemo-lo de forma diferente, olhamos para a sua filmografia com outros olhos e temos muita vontade de ver e rever dos seus títulos mais famosos aos menos conhecidos. Ao mesmo tempo, com Calista, convivemos com figuras do círculo social de Wilder, em especial I. A. L. Diamond, seu companheiro de escrita.

Jonathan Coe cria uma viagem aos bastidores do cinema de Billy Wilder, guiada por uma protagonista curiosa e aventureira. Um livro imperdível para cinéfilos e não só.


O Sr. Wilder & Eu, de Jonathan Coe - *8/10*

Porto Editora, Março de 2022

terça-feira, 6 de junho de 2023

Opinião - Séries: Rabo de Peixe / Turn of the Tide / Mar Branco (2023)

*8/10*


Rabo de Peixe, segunda série portuguesa da Netflix, inspira-se em acontecimentos reais para criar uma frenética e inacreditável história de crime e aventuras. Momentâneo sucesso mundial - tendo chegado ao top 10 da Netflix em mais de 30 países -, provavelmente perderá algum fôlego entre os mais vistos nos próximos dias, mas o impacto que causou, especialmente em Portugal, já ninguém lhe tira.

Tudo começa quando um barco cheio de cocaína se afunda na costa de São Miguel, ao largo da freguesia de Rabo de Peixe. O jovem pescador Eduardo (José Condessa) vê aí uma oportunidade para ganhar dinheiro, que se revela ter tanto de emocionante como de arriscado.


Criado pelo açoriano Augusto Fraga, que escreveu o argumento em conjunto com Hugo Gonçalves e João Tordo, Rabo de Peixe não fica atrás de outras séries internacionais sobre a máfia ou o tráfico de droga. A série portuguesa tem um ritmo frenético - tal como o efeito da cocaína nas personagens - e está repleta de analepses, com pausas na acção para mostrar como tudo aconteceu até ali. Humor e tragédia convivem com a esperança de uma vida melhor, que choca de frente com a violência dos que também acham que a droga lhes pertence.

A pobreza que se vive na freguesia, as escassas hipóteses de singrar na ilha, a homossexualidade num local tão fechado em si, o sonho americano sempre a pairar - em especial sobre Eduardo - são alguns dos temas que mais se destacam, paralelamente à acção principal.

Os protagonistas têm personalidades bem definidas e um contexto familiar/social que se vai construindo ao longo dos sete episódios desta temporada. O elenco jovem mostra talento: o carismático José Condessa como EduardoHelena Caldeira na pele da rebelde Sílvia, Rodrigo Tomás como Rafael - responsável por muitos dos momentos de humor da série - e André Leitão como o sonhador Carlitos. Pouco haverá a dizer sobre o extraordinário Albano Jerónimo, o antagonista Arruda, um homem perverso e cruel, e todavia, protagonista de momentos hilariantes. Ainda a destacar, o narrador Pêpê RapazoteUncle Joe, uma grande surpresa no decorrer da série.


A direcção de fotografia de André Szankowski filma Rabo de Peixe de um ponto de vista inebriante, destacando as paisagens naturais, mas igualmente as cores vivas das casas pelas ruas da freguesia. A direcção artística aproveita da melhor forma o tempo da acção, quando ainda havia clubes de vídeo, os telemóveis eram raros, os escudos e euros conviviam nas carteiras, as adolescentes espelhavam a moda da época (Sílvia tem sempre uma gargantilha que era peça fundamental também no meu visual de 2001).

Entre situações mais ou menos inverosímeis - ou exageradas - e aproveitando muitos dos mitos que se criaram em redor do caso real da cocaína na ilha, Rabo de Peixe apresenta bons valores de produção, um elenco competente e um enredo viciante que faz os sete episódios passarem num instante.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Há novo texto na rubrica 'Travelling' no filmSPOT

Desde o início do ano que, paralelamente ao Hoje Vi(vi) um Filme, tenho um espaço de opinião no site filmSPOT. A rubrica chama-se Travelling e já está online o meu segundo texto.

Desta vez, escrevi sobre a culinária no cinema, com destaque para três filmes onde a cozinha tem um papel central, lembrando, cada um deles, um really show culinário. Há chefs de cozinha exigentes e pratos de topo. Para esta ementa cinematográfica escolhi Triângulo da Tristeza, O Menu e Ponto de Ebulição. Podem ler o texto em https://filmspot.pt/artigo/da-cozinha-para-o-ecra-13779/.

Fica o convite para me acompanharem também no filmSPOT.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Há Nova Rubrica no filmSPOT: 'Travelling'

Ano Novo, nova rubrica. Desde ontem que, paralelamente ao Hoje Vi(vi) um Filme, tenho um novo espaço de opinião no site filmSPOT. A rubrica chama-se Travelling e lá irei escrever textos sobre filmes que vou vendo.

A primeira publicação saiu ontem, é sobre Men, de Alex Garland, e pode ser lida em https://filmspot.pt/artigo/men-os-vapores-toxicos-de-alex-garland-13715/.


Fica o convite para me acompanharem também no filmSPOT.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Opinião: Minisséries - House of Hammer (2022)

*7/10*

Em três episódios, a minissérie documental do Discovery + (disponível na HBO MaxHouse of Hammer faz uma análise às acusações de violação contra o actor Armie Hammer e à História da sua família.

"Este documentário começa em 2020, no auge da ascensão da fama de Hammer. Com revelações exclusivas da tia de Armie, Casey Hammer, e várias vítimas dos alegados abusos de Armie, a série documental traz ao de cima os segredos obscuros, que vão desde acusações de violência e abuso até à manipulação política e fraude financeira, escondidos dentro de uma das famílias mais proeminentes da América."

House of Hammer começa por escrutinar a ascensão de Armie Hammer enquanto actor, desde os pequenos papéis à participação em A Rede Social, de David Fincher, em que interpretou dois gémeos milionários com algumas semelhanças com ele próprio. A fama foi crescendo e atingiu o seu auge com Chama-me Pelo Teu Nome, de Luca Guadagnino.

O actor, bonito e relativamente discreto, casado e pai de dois filhos, surpreendeu tudo e todos quando, após o anúncio do seu divórcio, começaram a surgir acusações de violação e abusos contra si, em 2021. 

Eis que House of Hammer reúne os testemunhos de algumas das vítimas de Hammer, e revela mensagens e outras provas que ilustram as situações de violência a que as expôs. Entre práticas de bondage, sugestões de fantasias canibalescas, traumas e marcas no corpo das vítimas, a violência envolvia quase sempre cordas e ausência de consentimento. 

O segundo e terceiro episódios da minissérie documental fazem a análise da família Hammer - muito também através de imagens de arquivo -, desde o bisavô, o magnata do petróleo Armand Hammer, ao avô Julian Hammer e ao pai Michael Hammer, todos eles com histórias pouco simpáticas para com as mulheres, e vários episódios de violência, corrupção, abuso de drogas e álcool e, até mesmo, homicídio. E aqui surge a tia de ArmieCasey Hammer, um testemunho fundamental para melhor compreender o "historial" pouco abonatório da família.

A certo momento, a minissérie lembra Os Homens Que Odeiam as Mulheres, o primeiro capítulo da série de livros Millennium, escrito por Stieg Larsson. No livro - cujo título já diz muito -, também uma família de homens poderosos guarda segredos obscuros, intergeracionais e visando a mulher como vítima.

E porque o movimento #MeToo e #TimesUp - que, em tempo, Armie chegou a defender publicamente - estão longe de acabar, House of Hammer vem dar voz às vítimas de uma família de homens poderosos.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Opinião: Livro - Era Uma Vez em Hollywood, Quentin Tarantino

Depois do filme de 2019, Quentin Tarantino aventurou-se na literatura e escreveu o seu romance de estreia, Era uma vez em Hollywood. Filme e livro complementam-se, e um não é a cópia do outro: a acção está toda na longa-metragem; no livro estão os detalhes e o background das personagens.


Sinopse: "Rick Dalton, ator de Hollywood, não está na melhor fase da sua carreira. Após vários anos em que protagonizou grandes êxitos cinematográficos, surgiu uma nova estrela: Steve McQueen. Agora, Dalton recebe apenas papéis em séries de televisão e produções europeias. Sempre a seu lado, Cliff Booth, o seu duplo e fiel assistente. Juntos, protagonizam uma história em que descobrimos a Hollywood de finais dos anos 60 e em que aparecerão personagens tão díspares como Charles Manson, Roman Polansky ou Sharon Tate."

A paixão e admiração de Tarantino pela História do Cinema é bem conhecida e notória em cada novo filme, repleto de referências e homenagens. Era Uma Vez em Hollywood é um mergulho nos bastidores do cinema norte-americano em 1969, que, no livro, se constrói essencialmente a partir de três personagens: Rick Dalton, Cliff Booth e Sharon Tate, os seus percursos, experiências e ambições - sempre com o humor e obsessões que caracterizam o realizador. 

Habituado aos argumentos - em que é genial - , nota-se a dificuldade do autor "desligar" da escrita cinematográfica e abundam os pormenores neste primeiro romance. Por vezes, divaga um pouco para além do ideal, mas escreve com a paixão que coloca em cada filme, e entusiasma o leitor que se deixa envolver pelo fascínio do cineasta. 

E, indo bem além da história do filme - dando até pouco enfoque ao momento crucial da longa-metragem -, Era Uma Vez em Hollywood chega ao âmago das personagens, percorre o seu passado e o caminho que trilharam até ao momento dos acontecimentos, ao mesmo tempo que apresenta ao detalhe inúmeras curiosidades de Hollywood.

O romance de estreia de Quentin Tarantino é uma espécie de livro de memórias de Rick, Cliff e Sharon, um muito apetecível complemento ao filme homónimo.


Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino - *7/10*

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Opinião: Minisséries - Anne Boleyn (2021)

*7/10*

Ana Bolena foi rainha durante apenas três anos mas teve uma influência sobre o reinado de Henrique VIII que incomodou muita gente. Uma mulher que gostava do poder e desafiou o patriarcado da época. Se foi controversa e odiada durante o tempo em que viveu, era de esperar que a série sobre ela, do Channel 5, disponível na HBO Portugal, fosse só por si causar desconforto. 

Não vivêssemos nós numa era de extremismos e ódios exacerbados, e a opção de colocar uma actriz negra como protagonista poderia ser vista com orgulho e ousadia. Todavia, a minissérie Anne Boleyn tem sido polémica, principalmente, pela reinvenção de um passado sem discriminar cores de pele - um dos seus maiores trunfos enquanto experiência televisiva.

São apenas três episódios que seguem os últimos meses da mãe da rainha Elizabeth I de Inglaterra, entre a pressão de gerar um herdeiro para o trono, as preocupações com a política do reino e em garantir o melhor futuro possível para a filha.

Escrita e realizada por mulheres - Lynsey Miller na realização e Eve Hedderwick Turner no argumento -, Anne Boleyn conta a História sob uma perspectiva feminina, a da rainha, com toda a sensibilidade, delicadeza e empoderamento que lhe são devidos.

Do auge, filma-se a decadência de Bolena, até à traição, ao momento da execução, sem que, em momento algum, ela perca a dignidade. Dos momentos em que transpira confiança, grávida e apaixonada; à crueldade do parto e fragilidade que se segue, mais ainda perante as infidelidades do rei e as conspirações de Thomas Cromwell, Bolena cai e reergue-se contra todos. Jodie Turner-Smith atravessa as várias fases com nobreza, elegância e majestade, num desempenho a que ninguém ficará indiferente.

E eis o que terá incomodado os críticos: uma protagonista negra que veste a pele de uma rainha infame, cuja morte envergonha a História da coroa inglesa, mas que morreu de cabeça erguida. Uma série feminista - com as devidas liberdades criativas, mas respeitando o essencial dos livros de História- que lhe dá o valor, o poder e o carisma que lhe roubaram.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Opinião: Séries - Nove Perfeitos Desconhecidos / Nine Perfect Strangers - Temporada 1 (2021)

"We are on the precipice of something great."

Masha

*7/10*

Nove Perfeitos Desconhecidos, minissérie original da Hulu - disponível na Amazon Prime Video -, convida a um retiro relaxante num resort que irá testar todos os limites. Adaptando à televisão o livro homónimo de Liane Moriarty (autora de Big Little Lies), John-Henry Butterworth e David E. Kelley criam oito episódios viciantes, que jogam com os traumas de cada um.

"Nove Perfeitos Desconhecidos acompanha nove pessoas muito diferentes que chegam a Tranquillum House – um retiro de bem-estar misterioso que promete uma 'transformação total'. Quando lá chegam, os hóspedes parecem cair sob o feitiço da enigmática Masha que fará de tudo para os curar. Contudo, com o passar do tempo, os métodos pouco convencionais de Masha ameaçam levar o grupo explosivo ao limite."


Esqueçam a tranquilidade que o nome deste spa apregoa. Pensamentos, acções e emoções fugirão ao controlo de hóspedes e staff, e até os ingredientes e tratamentos menos ortodoxos serão válidos dentro da propriedade de Masha, totalmente desconectada com o exterior. Não há confinamento que supere o destes nove desconhecidos, que, durante a curta estadia, vão passar das terapias e jogos em grupo, às alucinações e sonhos vívidos.

Todas as personagens têm o seu quê de cliché, unidas pelo trauma, mas desconstroem-se com astúcia. A cada episódio, revelam novas camadas da sua personalidade, do seu passado e das razões que os fazem estar ali. A máscara das primeiras impressões vai caindo, bem como as defesas de cada um, e a plateia aproxima-se deles, aos poucos.


A minissérie tem um início prometedor, que cresce e explode em suspense e surpresas nos episódios seguintes. E mesmo que o desfecho não seja estrondoso, é compensador.

No elenco, Nicole Kidman sobressai como Masha, dona do retiro, de ar místico e calmo, mas também misteriosa e de olhar ameaçador, marcada por um passado violento a vários níveis; Melissa McCarthy é a escritora Frances, uma personagem tragicómica bem ao jeito da actriz; Michael Shannon é Napoleon, cujo optimismo extremo esconde uma perda irreparável. A estes nomes juntam-se ainda um conjunto de boas interpretações de Luke Evans, Bobby Cannavale, Melvin Gregg, Regina Hall, Asher Keddie, Samara Weaving e Grace Van Patten.

O argumento audaz de Nove Perfeitos Desconhecidos traz para o pequeno ecrã uma abordagem arriscada à capacidade de superação ou libertação de cada um, num ambiente controlado e alucinogénico, até mesmo para o espectador.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Opinião: Séries - A Estrada Subterrânea / The Underground Railroad - Temporada 1 (2021)

*7.5/10*


Uma Odisseia pela sobrevivência e liberdade é a proposta de Barry Jenkins na série A Estrada Subterrânea (The Underground Railroad). São dez episódios intensos e brutais, numa adaptação pertinente da obra homónima de Colson Whitehead.

"The Underground Railroad narra a luta desesperada de Cora Randall (Thuso Mbedu) pela liberdade. Após ouvir falar de um caminho de ferro subterrâneo, Cora decide escapar da plantação na Georgia onde é escravizada. Descobre que não se trata apenas de uma metáfora, mas de uma ferrovia real cheia de fogueiros, condutores e uma rede secreta de caminhos e túneis sob o solo do Sul. Durante a viagem, Cora é perseguida por Ridgeway (Joel Edgerton), um caçador de recompensas determinado em trazê-la de volta à plantação da qual escapou; mais ainda porque Mabel, a mãe de Cora, foi a única escrava fugitiva que ele deixou escapar. Enquanto se movimenta de um estado para outro, Cora enfrenta o legado da mãe que a deixou para trás e as suas próprias lutas para concretizar uma vida que nunca imaginou ser possível."


Barry Jenkins sabe captar o melhor e o pior do ser humano em cada episódio de A Estrada Subterrânea. Filma violência gráfica sem pudores, fere-nos com palavras, actos e mentalidades inacreditáveis, mas mais realistas do que gostaríamos. E a partir de mitos e lendas, já explorados por Colson Whitehead, Jenkins cria a aventura de uma vida contra a escravatura e pela liberdade e emancipação dos escravizados.

Mas a verdadeira essência desta série vai muito além da temática da escravatura já tantas vezes abordada (e bem) no cinema e televisão. Se o primeiro episódio contextualiza a actual situação de Cora, e nos apresenta a possibilidade de fuga, juntamente com Caesar, é a partir do segundo episódio que embarcamos na verdadeira viagem pela liberdade, onde nada é o que parece e surgem as mais macabras ideias, experiências e obstáculos. Em cada episódio, nem sempre linear, conhecemos melhor algumas personagens e seguimos em frente nesta estrada subterrânea, física ou metaforicamente falando. 


Cora é um misto de emoções e sentimentos, entre a raiva, o medo, a desconfiança, o amor, o ódio e a perseverança, numa fabulosa interpretação e entrega da actriz Thuso Mbedu neste seu primeiro papel como protagonista. O antagonista Ridgeway causa alguma estranheza e curiosidade. A personagem de Joel Edgerton, um caçador de recompensas com poucos escrúpulos, ganha espaço ao longo da série, e revela-nos um homem complexo e contraditório, cheio de dúvidas emocionais e espirituais. Ridgeway vive para o que melhor sabe fazer na vida: capturar escravos em fuga; apesar de, ele próprio, não ser esclavagista. Um homem de paradoxos, determinado e orgulhoso. Ao longo dos episódios conhecemos outras figuras que se destacam entre os restantes e trazem ainda mais riqueza à jornada de Cora


A Estrada Subterrânea é uma surpreendente reflexão sobre o Passado e o Presente, com uma réstia de esperança no Futuro.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Curtas Vila do Conde 2021: Vencedores da Competição Internacional em Análise

Depois de conhecidos os vencedores do Curtas Vila do Conde 2021, deixamos uma breve análise aos títulos que conquistaram os prémios da Competição Internacional: VO, de Nicolas Gourault, vencedor do Grande Prémio e candidato aos European Film Awards, indicado pelo CurtasI Gotta Look Good For The Apocalypse, de Ayce Kartal, vencedor do prémio para melhor filme de animação; Farrucas, de Ian de La Rosa, considerado o melhor documentário da competição; e a melhor curta de ficção, L'Enfant Salamandre, de Théo Dégen.


VO, Nicolas Gourault 

França - Vencedor do Grande Prémio, para o melhor filme em competição

"A ideia de um carro que seja capaz de conduzir-se a si próprio, de forma autónoma e sem intervenção humana, faz parte do imaginário da ficção científica há muito tempo. Recentemente, devido a diversos avanços tecnológicos e ao investimento de diversas empresas, que viam nesta hipótese uma solução para os seus negócios deficitários, este sonho parecia tornar-se realidade em breve. VO surge então como uma investigação quase forense ao que ocorreu de errado quando, em 2018, um dos testes desta nova tecnologia acabou em tragédia com enorme repercussão mediática: um erro da supervisão humana, uma falha da inteligência artificial, ou um misto dos dois?" 

Nicolas Gourault lança a reflexão sob vários pontos de vista, acerca da polémica questão dos carros autónomos. Através de excertos noticiosos, simulações gráficas e testemunhos de pessoas envolvidas, VO é um trabalho dinâmico, actual e cativante. 


I GOTTA LOOK GOOD FOR THE APOCALYPSE, Ayce Kartal 

Turquia/França - Prémio para Melhor Filme de Animação

"O ano cinemático que passou foi inevitavelmente contagiado pela inédita situação pandémica que se viveu a nível mundial. É também inevitável que esse contágio se manifeste sobre uma forma de comentário em relação ao sentimento de apocalipse mediático que todos atravessamos e as imagens únicas e inesperadas que surgiram, como por exemplo, de espaços subitamente vazios. Em I Gotta Look Good For The Apocalypse, Ayce Kartal recorre a algumas dessas imagens que marcaram este último ano, encontradas no Youtube ou noutras partes da Internet."

Ayce Kartal capta em animação alguns dos principais momentos que se viveram por todo o mundo desde o início da pandemia. Das ruas vazias, ao confinamento, do escape de alguns para a realidade virtual, à tensão familiar, até ao desconfinamento, aos poucos, e à adaptação à nova rotina. Uma experiência entre a melancolia e o humor, onde nem a corrida ao papel higiénico dos primeiros meses escapou.


FARRUCAS, Ian de la Rosa 

Espanha/EUA - Prémio para Melhor Documentário

"Uma viagem até El Puche, um bairro periférico esquecido nos subúrbios da cidade espanhola de Almería, revela pelo olhar atento de Ian de La Rosa uma irmandade notável entre quatro raparigas adolescentes. Orgulhosas das suas raízes marroquinas e espanholas – ou melhor, andaluzas –, elas estão conscientes das dificuldades e limitações que a sociedade lhes impõe, apenas por causa dessas origens."

Farrucas percorre sonhos e desilusões de quatro jovens de origens humildes, durante a celebração do aniversário de uma delas. O lixo, que rodeia o bairro onde vivem, denuncia a desesperança e a melancolia que paira sobre as lutas diárias que todas travam para alcançar as metas que tantos lhes negam. Em jeito de docuficção, o realizador Ian de La Rosa filma as protagonistas de forma íntima e muito próxima, reforçando a irmandade entre as quatro amigas, que passa para o outro lado do ecrã. 


L’ENFANT SALAMANDRE, Théo Dégen 

Bélgica - Prémio para Melhor Ficção

"Florian acreditava que podia comunicar com os mortos através do fogo, com o seu pai. Ele é a criatura mais estranha da aldeia onde vive. Por isso, é perseguido pelos jovens locais, que o maltratam, espancando-o e humilhando-o. De tanto ser julgado como um monstro, acaba por se transformar num e, doravante, terá muitas histórias para contar ao seu pai."

Seja um mundo mágico, invisível, paralelo, ou apenas a imaginação juvenil a trabalhar, certo é que L'Enfant Salamandre é um mergulho num surrealismo inocente, onde não faltam as agruras bem reais de um adolescente. Os bullies não dão descanso ao protagonista, mas nem eles demovem a sua dedicação em reencontrar o pai. No meio das aventuras e descobertas, há portas que se abrem, uma amizade que se constrói, e muitas histórias para contar.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Opinião: Séries - Manhãs de Setembro / September Mornings - Temporada 1 (2021)

*7/10*

Manhãs de Setembro é a segunda produção brasileira Amazon Original, tem como protagonista uma mulher trans e estreia no Pride Month. Um conjunto de características que adensam a curiosidade em torno desta série de cinco episódios.

Criada por Josefina TrottaAlice Marcone Marcelo Montenegro, a história de Manhãs de Setembro constrói-se em volta da personagem interpretada por Liniker de Barros (que se estreia como actriz) e é com ela que estabelecemos a maior empatia: uma mulher segura e independente que está no auge da sua vida, após muitas superações.

Liniker é "Cassandra, uma mulher trans que trabalha como motogirl em São Paulo e que tem na música a sua maior força. Ela teve que abandonar a sua cidade para realizar o sonho de se tornar cover de Vanusa, cantora brasileira que fez sucesso na década de 70. Após anos de muito sofrimento, Cassandra vive agora um momento de estabilidade: ela consegue alugar um apartamento só seu e descobre o amor na figura de Ivaldo (Thomas Aquino). Mas tudo se complica quando a sua ex-namorada, Leide (Karine Telles), reaparece com uma criança que diz ser seu filho."

Com episódios curtos e cativantes, Manhãs de Setembro tem momentos inspirados e envolventes, onde os sentidos se apuram e não são precisas palavras para compreender o que vai na cabeça de Cassandra. Ainda assim, esperava-se uma série mais corajosa ao entrar na realidade de uma mulher transexual no Brasil actual. Se, por um lado, há uma normalização da protagonista - o que é bom que aconteça, e a naturalidade com que a série toca as temáticas LGBTQ+ é notável -, por outro, sente-se falta de mais algum confronto e crítica à sociedade brasileira, ainda tão intolerante. Para além do dia-a-dia de Cassandra, o foco de Manhãs de Setembro centra-se, em especial, no conceito de família e na marca que a mesma pode deixar em cada um.

A importância da música na vida da protagonista está espelhada na nostálgica banda sonora, repleta de temas e uma presença quase sobrenatural de Vanusa, cantora falecida em 2020, e a voz da "consciência" de Cassandra. Já Liniker enche o ecrã de corpo, alma e voz, numa entrega notória.

Fica aberta a possibilidade de uma segunda temporada para Manhãs de Setembro. Cassandra merece um mergulho mais profundo na sua vida e sensibilidade.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Opinião: Séries - Back to Life - Temporada 1 (2019)

*7.5/10*

São apenas seis episódios, que se vêem de rajada e nos fazem implorar por mais. Miri é a nossa guia numa jornada de reintegração na sociedade, após cumprir pena de prisão. O impacto das mudanças, o preconceito e todas as dificuldades inerentes a este "regresso à vida" são abordadas com muito humor em Back to Life, série criada e protagonizada por Daisy Haggard.

"Miri tem 37 anos, passou os últimos 18 na prisão por um crime terrível. Sem amigos ou trabalho só se pode fazer uma coisa: ir viver com os pais outra vez."

Se a reinserção já é difícil, quando se pensa no regresso a uma pequena vila inglesa, como acontece a Miri, onde todos a conhecem e sabem o crime que cometeu, tudo se torna ainda mais complicado. Para além dos pais - com quem a relação também não é fácil -, Miri começa do zero, e até arranjar emprego se revela uma tarefa hercúlea. 

Apesar do ódio latente que paira sobre a protagonista e das dificuldades, o dia-a-dia na vila não tem falta de emoção: há um detective obcecado, uma directora de escola traumatizada, a sexualidade na terceira idade, um ex-namorado imaturo, uma nova loja 'fish & ships' e um novo vizinho simpático. Não faltam situações caricatas, recheadas do requintado humor britânico e um sentimento de nostalgia que passa para o outro lado do ecrã.

As mudanças tecnológicas evidenciam os contrastes dos 18 anos em que viveu encarcerada. O regresso ao seu quarto - ele próprio uma viagem no tempo -, estagnado no início dos anos 2000, tem um impacto que vai dos posters de artistas desaparecidos, ao walkman, discman, cassetes e até mesmo um tamagotchi. O analógico paira no quarto de Miri como um fantasma do passado que, para ela, ainda é Presente.

Há algo de extremamente delicado e sensível em Back to Life, e Daisy Haggard é a principal responsável por isso, quer pela história tão simples, divertida e igualmente impactante que criou; como, principalmente, pela pureza e jovialidade da protagonista, perdida no limbo entre o final da adolescência e a aproximação dos 40 anos, as experiências que ficaram por viver, a culpa que carrega e as perguntas que nunca tiveram resposta. Um crime colocou-lhe a vida em suspenso durante quase 20 anos; agora, a comunidade não lhe dá a oportunidade de voltar a viver.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Opinião: Minisséries - I May Destroy You (2020)

*7.5/10*


Michaela Coel criou I May Destroy You na sequência de um episódio de abuso sexual de que foi vítima. A história de Arabella é inspirada no seu próprio caso, e a minissérie pode ser encarada como um acto de coragem e de catarse. 

"Facilmente distraída, descomprometida e despreocupada, Arabella Essiuedu (Michaela Coel) vê uma das suas obras literárias elogiada online. De repente, é apelidada de 'a voz da sua geração' e ganha um agente, um contrato para a publicação dos seus próximos livros e muita pressão. Violada numa discoteca, Arabella é forçada a reavaliar tudo: a sua vida, a carreira, os amigos e até a família. Enquanto luta para aceitar o que aconteceu, Arabella começa também uma viagem de autodescoberta."

A singularidade de I May Destroy You está na forma crua e despudorada com que trata temas que a sociedade ainda encara como tabu: o sexo (heterossexual, homossexual ou com múltiplos parceiros); a menstruação; a violação (nas suas diversas formas); a forma diferenciada como as vítimas de abuso sexual são tratadas pelas autoridades, consoante o género ou orientação sexual; o conceito de consentimento ou a transexualidade.


Através de 12 episódios curtos, intensos e vibrantes, sentimos que a jornada pela vida de Arabella passa num instante, com um impacto brutal em nós e, esperemos, na sociedade. Apegamo-nos a ela e aos seus amigos mais próximos - Terry (Weruche Opia), Kwame (Paapa Essiedu) e mesmo o solitário Ben (Stephen Wight) - e adoramos a naturalidade com que os quatro interagem e a intimidade que partilham. Este realismo é um dos pontos mais fortes de I May Destroy You. A entrega de Michaela Coel, Paapa Essiedu e Weruche Opia resulta na relação de amizade ficcional mais genuína e credível.

Arabella tem extrema dificuldade em aceitar e lidar com o que lhe aconteceu - com todos os fantasmas literalmente escondidos debaixo da cama -, mas nunca chega a ter medo. É uma mulher corajosa, descomplexada e bem resolvida, que sofre um forte golpe na sua independência ao perceber que é uma vítima. O trauma leva-a a reviver outras experiências marcantes da sua vida, que haviam ficado perdidas no subconsciente, e, ao longo dos episódios, acompanhamo-la numa viagem de autodescoberta e de reavaliação das prioridades - a dependência que os três amigos (Arabella, Terry e Kwame) têm das redes sociais chega a ser perturbadora e uma ameaça à sua própria liberdade.

I May Destroy You apresenta ainda um excelente trabalho técnico, com a direcção de fotografia a sobressair, em especial nas cenas nocturnas, e com a montagem a desempenhar um papel essencial para entrar nos flashbacks da protagonista após a noite da violação.


Depois do crescendo dos episódios iniciais - onde são feitas abordagens talvez nunca vistas em televisão -, a minissérie perde-se por momentos, especialmente entre os episódios 6 e 9, recuperando todo o fulgor nos três últimos, numa conclusão inspiradora.

Michaela Coel transpira talento, superação e criatividade e I May Destroy You é a maior prova disso mesmo. Poderá não ser a minissérie perfeita, mas é fundamental para normalizar e por em debate tantos assuntos que a opinião-pública, desde sempre, quis calar.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Opinião: Séries - Vernon Subutex (2019)

A série francesa de nove episódios Vernon Subutex, protagonizada por Romain Duris, estreia esta Sexta-feira, dia 5 de Março, na plataforma Filmin Portugal. Escrevemos sobre ela no filmSPOT, e podes ler o artigo aqui: Vernon Subutex: o homem analógico.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Opinião: Minisséries - The Virtues (2019)

*8.5/10*

A minissérie The Virtues é um trabalho muito pessoal de Shane Meadows, que cria uma história, inspirada no seu próprio trauma para libertar e confrontar os seus fantasmas. O resultado é uma obra poderosa e incómoda de quatro episódios, que está agora disponível na plataforma Filmin Portugal.

Shane Meadows e Jack Thorne constroem a minissérie em torno das ideias de vingança e redenção, acompanhada por uma banda sonora sombria e intensa de PJ Harvey

"Sem família próxima a quem recorrer, Joseph está obcecado com um passado que durante décadas tentou esquecer, enterrando-se no álcool e nas drogas. Farto de uma vida sem rumo, decide regressar à Irlanda natal para enfrentar as suas lembranças de infância, ligados aos serviços sociais que se encarregaram da sua tutela. Destroçado física e psicologicamente, reencontra Anna, a irmã que não via desde que era criança, e começa a trabalhar na empresa do marido desta, Michael. Quando Joseph conhece a irmã de Michael, a irascível e temperamental Dinah, que também vive escrava de uma dolorosa lembrança, estabelece-se entre ambos uma relação que poderá chegar a ser libertadora para ambos."

As memórias traumáticas da infância de Joseph estiveram recalcadas até ao dia em que tem de se despedir do filho de nove anos, que vai viver para a Austrália com a mãe. Eis o grande impulsionador de uma ressaca monumental e da decisão da sua vida: reencontrar o Passado e a irmã que deixou na Irlanda há mais de 30 anos. The Virtues leva-nos a um país que colecciona casos reais sobre um passado sombrio que muitas crianças irlandesas viveram em instituições (As Irmãs de Maria Madalena, de 2002, e Filomena, de 2013, são dois exemplos que passaram a realidade para a ficção).

As memórias reprimidas vão surgindo desde o primeiro episódio, primeiro soltas e descontextualizadas - adensando a curiosidade do espectador -, depois, cada vez mais claras. As recordações traumáticas são desenterradas e a confrontação causa pânico e ansiedade. O álcool e as drogas foram um escape à realidade dolorosa vivida - mesmo que temporariamente esquecida. A apresentação do passado, em jeito de vídeo caseiro, é uma opção sensata, que demarca bem o hiato temporal entre a infância e vida adulta.

A introdução da personagem Dinah, uma espécie de espelho feminino dos sentimentos e descontrolo que percorrem a mente de Joseph, dá um novo fulgor narrativo a The Virtues. Dinah e Joseph, cada um à sua maneira, têm contas a ajustar com o passado. Compreendem-se e apoiam-se mutuamente. A partir de certo momento, acompanhamos a minissérie a partir de uma dualidade de perspectivas e de atitudes - dois traumas que determinaram dois destinos; duas formas de confrontação e de justiça.

A entrega de Stephen Graham à personagem principal é completa, num registo que varia entre a desolação, o descontrolo, a coragem e o horror. A mágoa que o seu rosto espelha é tão real como admirável.

Se o primeiro episódio atrai a curiosidade e interesse do espectador, o último é um crescendo de tensão, confronto e coragem, que vem encerrar com êxito o drama de The Virtues. As feridas do passado de Joseph podem nunca sarar mas foram elas que o conduziram de volta à Irlanda, e o fizeram reencontrar a irmã e a si mesmo, numa jornada de autoconhecimento, reconciliação e luta para fazer justiça.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Opinião: Minisséries - The Undoing (2020)

*7/10*


The Undoing deu que falar nos últimos dias (e semanas). A minissérie, disponível na HBO Portugal, é protagonizada por Nicole Kidman e Hugh Grant, realizada por Susanne Bier e escrita para televisão por David E. Kelley (Big Little Lies). Muito mistério, sensualidade e incertezas espreitam por cada episódio - são seis no total - e certo é que vamos querer descobrir a verdade.

Os três primeiro episódios de The Undoing são especialmente viciantes, num crescendo de emoções, tensão e possibilidades, fazendo o espectador questionar continuamente tudo e todos os suspeitos. O "vício" começa aqui.


A minissérie acompanha Grace e Jonathan Fraser, que têm a vida que sempre quiseram, com o filho Henry (Noah Jupe). Durante a noite, o abismo abate-se sobre as suas vidas com uma morte violenta e uma cadeia de terríveis revelações.

A família de Grace Fraser é rica e bem sucedida, elegante, com um núcleo de amigos de classe alta e o filho num colégio privado. O surgimento de uma nova mulher no grupo de amigas de Grace, totalmente deslocada, de classe mais baixa, imigrante e extremamente sensual, vem abalar a vida da protagonista. O choque de classes sociais é logo o primeiro desconforto sentido em The Undoing. Depois surge a morte, a traição e as suspeitas que recaem sobre a família. Grace vê-se no lugar dos seus pacientes, que a procuram para reatar as relações após traições. Mas Grace não quer ser fraca, mesmo quando fraqueja.


As mentiras sucedem-se a cada episódio, bem como as suspeitas do espectador. As cenas do julgamento voltam a conferir algum fulgor à acção, sem receios de chocar - seja por imagens ou por jogadas mais ou menos sujas das advogadas -, mas, no final, não há nada de absolutamente novo a revelar.

O melhor de The Undoing são, sem dúvida, as interpretações, seja a sempre brilhante Nicole Kidman, como um sofrido e dúbio Hugh Grant, com destaque ainda para o jovem Noah Jupe - num papel que é um turbilhão de emoções para um pré-adolescente que idolatra o pai - e a prestação sempre intimidante de Donald Sutherland.


A minissérie de David E. Kelley é eficaz ao prender-nos ao ecrã, numa incessante ânsia por descobrir a verdade, mas cai em alguns lugares-comuns, com diversos altos e baixos na narrativa e um final que deixa a desejar. Visualmente, estamos perante um trabalho cativante, tirando partido das cenas nocturnas, e de um guarda-roupa distinto. A montagem confere dinamismo e algum atordoamento - bem como os planos desfocados -, fazendo-nos construir e reconstruir vários cenários, quais detectives.

The Undoing deve ser visto e apreciado mas sem demasiadas expectativas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Opinião: Minisséries - O Colapso / L’Effondrement (2019)

*7.5/10*

A minissérie francesa O Colapso (L’Effondrement) chegou hoje à plataforma de streaming Filmin. O grupo de realizadores, Les ParasitesJérémy Bernard, Guillaume Desjardins e Bastien Ughetto -, não anteciparam a pandemia, mas uma outra forma de caos, bem pior do que a que vivemos na realidade. O Colapso é um escape para quem gosta do género. São oito episódios de cerca de 20 minutos cada, filmados num único plano-sequência, mostrando o passar dos dias, em vários locais de França, desde o dia em que o sistema colapsou.

"O que aconteceria ao planeta e à nossa sociedade se o sistema entrasse em colapso amanhã? Quais os princípios que regeriam esta nova normalidade: a entreajuda, a igualdade ou a sobrevivência? Seria o fim da Humanidade ou talvez a única hipótese de reformar uma sociedade capitalista que aparenta ter os dias contados?"

Nesta minissérie, "acontecimentos dos quais desconhecemos as causas e origens, provocaram o colapso da sociedade francesa. Este é o gatilho que desencadeia um conjunto de histórias em diferentes localizações, nascidas de perspetivas díspares, tendo como fio condutor o desespero de quem tenta sobreviver a qualquer custo."

A tensão é crescente, e desde o primeiro episódio que sabemos que algo não está bem. Muitos dos receios que temos visto em filmes, séries ou livros de catástrofes vão surgindo, neste ou naquele momento. A sobrevivência a qualquer custo é mesmo o motor das acções das personagens, mas há excepções, onde o altruísmo é mais forte. E aí O Colapso consegue surpreender-nos.

O título de cada episódio localiza-o no espaço e no tempo: Le Supermarché (O Super-mercado)La Station-service (A Estação de Serviço)L'Aérodrome (O Aeródromo)Le Hameau (A Aldeia)La Centrale (A Central)La Maison de Retraite (A Residência)L'ïle (A Ilha)L'Émission (A Emissão).

A opção de filmar os episódios em plano-sequência é o que mais distingue O Colapso. A câmara coloca-nos no centro dos acontecimentos, faz-nos correr, esconder, subir e descer escadas, lutar, desesperar. Ao vivermos cada momento em "tempo real", cada episódio é sentido com uma intensidade acima da média, apelando a sentimentos e emoções distintos, entre a angústia, a adrenalina, a revolta e a esperança. Ao longo dos oito episódios, há personagens que reencontramos com o passar dos dias no seu trajecto em busca da sobrevivência - seja qual for a sua classe social ou profissão, todos estão na mesma luta contra o tempo.

O Colapso está nomeado para Melhor Telefilme/Minissérie nos Emmy International 2020, cuja cerimónia acontece no próximo dia 23 de Novembro.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Crítica: Jah Intervention / Intervenção Jah (2019)

*7.5/10*


Jah Intervention é uma performance poderosa, numa conjunção entre dança e luta, uma forma de expressão e de manifestação. Contra o racismo e contra a violência.

A curta-metragem realizada por Daniel Santos, e escrita e interpretada por Welket Bungué, tem passado por diversos festivais no mundo inteiro, e conquistou recentemente uma menção honrosa no  Screen.dance Film Festival, na Escócia, e está agora em competição no Moovy Tanzfilmfestival, em Colónia, na Alemanha.

"Intervenção Jah visa uma caminhada simbólica até à exaustão. A intervenção propõe o aquecimento pré-liminar que antecede um combate de titãs num ringue de boxe. A intervenção consiste no movimento do performer intuindo a queda repentina quando afectado por perfurações por balas de armas semi-automáticas. Segundo os resultados divulgados em 2017, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as pessoas negras no Brasil ainda representam mais de metade da população do país. Entre 2005 e 2015 o número de pessoas negras assassinadas aumentou 18% e isso nos tornou também a maior parte das vítimas de homicídio, tendo correspondido a 71% do total de corpos registados." 


A presença de Welket Bungué domina o ecrã, com as desigualdades do Rio de Janeiro como pano de fundo: o Corcovado de um lado, a favela do outro. Eis a grandiosidade de um país desconstruído pela câmara de Daniel Santos e pela interpretação de Welket

A banda sonora envolve-nos ainda mais no manifesto de Jah Intervention, dando ritmo aos movimentos de libertação do actor, onde o olhar directo à câmara coloca também em nós espectadores, a responsabilidade de agir e lutar. É no Brasil, mas podia ser em Portugal, nos Estados Unidos da América ou em outras partes do mundo.

Daniel Santos e Welket Bungué trazem-nos um filme sensorial e profundo, onde o corpo, o olhar e a cidade se cruzam e assumem o comando da acção e das acções.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Iniciativas de Bloggers: "Suores Frios", do blog Not a Film Critic

A convite da FilmPuff, do blog Not a Film Critic, mergulhei nas minhas memórias com filmes de terror, procurando um título que tivesse marcado de alguma forma, positiva ou negativa, a minha experiência com o cinema de género. A iniciativa chama-se Suores Frios e o meu "capítulo" intitula-se Terrores Adolescentes - já vão perceber porquê.


«Comecei a ver filmes de terror com frequência por influência da minha melhor amiga, teríamos nós 12 anos. Os pais delas eram sócios de um videoclube (bons velhos tempos...) e estávamos lá nós batidas, de quando em quando, a alugar um filme - normalmente de terror. Um pouco mais velha, comecei a vê-los também no cinema, a maioria das vezes sem saber bem ao que ia, já que a Internet ainda escasseava. Aí já era o meu primo o responsável pelas escolhas mais assustadoras. Tínhamos o costume de ir num grupo de quatro ou cinco adolescentes que só queriam Cinema como forma de espairecer e distrair, um escape da realidade por uma hora e meia ou duas. Não estávamos muito interessados com a qualidade para além do entretenimento.

Para a presente rubrica, escolhi um filme que vi numa destas incursões ao cinema do Colombo com o primo e três amigos, numa sessão da noite. A Descida (The Descent) estava em cartaz e tínhamos "ouvido falar bem", para além da sinopse ser convidativa: um grupo de raparigas numa gruta com criaturas assustadoras pelo meio, parecia-nos bem.

Saímos da sala estarrecidos, revoltados, não gostámos. Não gostámos dos saltos que demos das cadeiras, lá escondidos na última fila da sala, não gostámos de ter de esconder a cara com o pacote de pipocas sempre que havia a eminência de um daqueles bichos (uma espécie de orcs albinos, como os baptizei) aparecer de repente e comer uma das raparigas (ou saltar do ecrã e nos comer a nós?!), não gostámos do grito mudo de pânico que demos quando um deles ficou visível pela primeira vez, não gostámos de nenhuma das sensações que nos atormentaram dentro da sala de cinema.


Ainda hoje, e sendo quase consensual que A Descida é um dos melhores filmes de terror dos últimos 20 anos, continuo a ter alguma repulsa por esse título, e o sentimento é comum a quem me acompanhou a essa sessão, há cerca de 15 anos. Causou um belo trauma naqueles jovens que ainda cheiravam a pó talco. E, curiosamente, não me parece que alguma vez me vá reconciliar com o dito filme. O que vale é que o mundo cinematográfico em geral, e o género de terror em particular, está longe de se esgotar naquela gruta (ou naquela sala de cinema). E nós aprendemos a gostar de ter medo deste tipo de ficção, seja na sala de cinema ou na de casa.»


O meu obrigada à FilmPuff pelo convite e parabéns pela excelente iniciativa!

Para finalizar, dedico este texto à Mónica, a melhor amiga dos filmes de terror dos clubes de vídeo, ao primo Vítor que me levava a ver os filmes com os títulos mais assustadores, e aos restantes amigos que estiveram comigo naquela sessão de A Descida - Inês N., César e André.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Monstra 2020: Competição de Curtas 5 em Análise

Na quinta e última sessão da Competição de Curtas da Monstra 2020, vimos nove filmes. Irão, Estónia, Japão, Polónia, Áustria, Brasil são algumas das origens das curtas-metragens, numa selecção que conta com o português Purpleboy, de Alexandre Siqueira, sobre o qual escrevemos aqui.

Do Irão, Sou um Lobo? (Am I a Wolf?), de Amir Houshang Moein, é uma animação delicada, que cria um ambiente de fantasmagoria em redor da inocência das crianças, que "apresentam a história do lobo e dos cabritinhos num espectáculo de fantoches na escola. Como de costume, o lobo vence, mas... será que sim?"

Cosmonauta (Cosmonaut)
Cosmonauta (Cosmonaut), de Kaspar Jancis, leva-nos ao espaço com um astronauta, que recorda a sua juventude como se a continuasse a viver e a idade não tivesse passado. Uma curta-metragem tragicómica, com a demência a entristecer as memórias felizes do velho cosmonauta. Ele que "vive o mesmo tipo de vida que vivia durante a sua juventude na estação espacial, mas agora no seu apartamento de betão. Será este velho capaz de passar a viver sob as normas que regulam a sociedade?"

A cidade de Linz é-nos apresentada de um ponto de vista totalmente diferente na curta-metragem Prazer em Linz (Linz delights), de Maya Yonesho. Um filme curto que nos leva numa viagem bastante completa, "feito com 1368 pequenos desenhos guardados por uma pessoa, captados em Linz, com efeitos sonoros gravados em Linz." Este passeio liga-nos à cidade através de fotografias tiradas em diversos locais da cidade, onde o desenho se liga com a arquitectura e gastronomia, dando-lhe a sensação de movimento que o funde com a imagem real, de fundo.

A Última Ceia (Last supper)
Mais arrojada, a curta-metragem A Última Ceia (Last supper), de Piotr Dumała, coloca a famosa pintura bíblica numa carruagem de comboio e dá-lhe vida. Os Apóstolos entram num bailado, com sombras e luzes a acompanhar, numa coreografia ao ritmo de uma banda sonora sonante e envolvente. Todos dançam, à excepção de Jesus e Judas Iscariotes. Um bom e provocador trabalho do realizador.

Não Sei O Quê (Don’t Know What), de Thomas Renoldner, é um trabalho experimental onde animação propriamente dita não existe. Brinca-se com a imagem real e com os sons, usando diversos processos e criando quase um boneco da imagem do protagonista, mas não existe muito mais a retirar do filme. Este "filme avant-garde absurdo" é, acima de tudo, um exercício de estilo.

Medo (Fear)
Do Brasil, chega-nos Medo (Fear), de Luísa Bacelar, um trabalho bastante subjectivo e visualmente cativante, onde um cartaz nos anuncia: "tudo o que você quer está do outro lado do medo". Um aviso para as duas personagens, cujas realidades distintas "colidem e convergem numa mesma decisão, o que fazer agora? O medo da escolha vai resultar em diferentes consequências que não dependem somente da acção, mas também em qual universo esta é tomada".

Freeze frame, de Soetkin Verstegen, combina vários tipos de animação numa curta-metragem onde a estética é rainha. Cortadores e blocos de gelo, animais e cinema são os protagonistas de "Freeze frame: a técnica mais absurda desde a invenção da imagem em movimento".

Um dos melhores filmes desta sessão é A Minha Geração (My Generation), de Ludovic Houplain. Numa animação com muito detalhe e informação, é feita uma crítica feroz à espécie de fascismo cultural que vivemos na actualidade. Andamos em marcha atrás numa longa estrada, onde passam por nós, a alta velocidade elementos culturais, museus, marcas, redes sociais, Internet, desporto (nem o Cristiano Ronaldo falta), ídolos, religiões, seitas, pornografia, poder, Donald Trump e política. E que tal quebrar com toda a informação que nos entra pelos olhos, mesmo que não queiramos? É esta a principal mensagem desta provocadora e implacável curta-metragem. Diz-nos a sinopse: «Bob Iger, afirmou em tempos que “Hitler teria adorado redes sociais”. Estaria à vontade nos nossos tempos de "totalitarismo suave". E se pousássemos os nossos smartphones e abríssemos bem os nossos olhos?» Talvez seja um bom conselho a seguir.

A Minha Geração (My Generation)
Sou um Lobo? (Am I a Wolf?), de Amir Houshang Moein - 7/10
Cosmonauta (Cosmonaut), de Kaspar Jancis - 7/10
Prazer em Linz (Linz delights), de Maya Yonesho - 7/10
A Última Ceia (Last supper), de Piotr Dumała - 8/10
Não Sei O Quê (Don’t Know What), de Thomas Renoldner - 4/10
Medo (Fear), de Luísa Bacelar - 6/10
Purpleboy, de Alexandre Siqueira - 8.5/10
Freeze frame, de Soetkin Verstegen - 6.5/10
A Minha Geração (My Generation), de Ludovic Houplain - 8.5/10