quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Já Vi(vi) este Filme, por Samuel Andrade

Já Vi(vi) este Filme

A prova mais cabal de que não nasci para ser actor (nem sequer para a arte da pantomima) ocorreu nos idos de 2000: o Verão da humidade a raiar os 100% dos Açores já se sentia, o 12º ano aproximava-se do seu termo, e o meu professor de Oficina de Expressão Dramática (O.E.D.) escolheu, corajosamente, levar à cena Salomé, de Oscar Wilde, como trabalho de final de ano da disciplina. Ou seja, o texto que inspirou o argumento de Salome's Last Dance, um dos filmes mais obscuros do realizador britânico Ken Russell.
Coube-me interpretar Jokanaan, uma versão estilizada da figura bíblica de João Baptista. Sendo uma das personagens-chave do texto de Wilde, e dada a minha quase flagrante ausência de potencialidades de alguém um dia me considerar como potencial “animal de palco”, os sentimentos de amedrontamento e nervosismo eram dominantes no espírito de um puto de dezoito anos.


Talvez o facto de a minha turma de O.E.D ser maioritariamente composta por raparigas (naquela disciplina, era eu e mais um colega masculino) tenha pesado na escolha de casting do professor. A interpretação de outros papéis masculinos fundamentais na peça (Herodes, o jovem Sírio, etc.) ficou, portanto, a cargo de mulheres – uma vicissitude que poderia até nem desagradar a Oscar Wilde. Quero acreditar que também foi decisiva a circunstância de Jokanaan estar literalmente desaparecido de cena durante 90% da peça, resumindo-se a sua presença à audição de clamores proféticos ditos a partir de um canto do palco onde permanecia escondido, e uma lâmpada, que se acendia nos momentos certos por trás de mim, formava a minha sombra num pano branco. Afinal de contas, a projecção de voz era mesmo o meu item de avaliação com melhor aproveitamento.

Realizaram-se duas encenações: uma para a escola, outra mais privada, para pais e professores. O meu guarda-roupa consistia numa t-shirt rasgada e deliberadamente suja, e uns calções pretos igualmente encardidos para a ocasião. Encheram-me a cara de pó branco (uma opção de make-up que nunca compreendi). Da única vez que surgia em palco, estava descalço, pronto a rejeitar as lascivas investidas românticas de Salomé e vociferar deixas como "Filha da Babilónia! Não te aproximes do escolhido do Senhor. A tua mãe encheu a terra com o vinho das suas iniquidades, e o grito dos seus pecados chegou aos ouvidos de Deus".

No meio disto tudo, ser uma personagem “escondida” proporcionou uma genuína vantagem: poder ter o texto aberto à minha frente durante a própria encenação da peça. Pormenores.

Apesar do medo, da insegurança e da voz projectada mas tremida, a experiência deixou uma marca indelével na minha pessoa. E quando (anos mais tarde, não sei precisar em concreto o espaço temporal) vi, por fim, o filme de Ken Russell, toda uma sensação de nostalgia!

O argumento não altera uma vírgula ao texto de Oscar Wilde – o qual é, no único mas delicioso desvio à peça, espectador solitário de uma interpretação de Salomé –, e a película está infundida de uma atmosfera apropriadamente dandy, grotesca e boémia.

Em Salome's Last Dance, Russell espicaça a sensualidade de um texto que, por si, é já metaforicamente erótico, e intensifica visualmente as desconfianças, iras, desilusões e conflitos entre as personagens. Na nossa versão, elaborada para o “público” de uma escola pública, as palavras assumiram contornos de cândida expressividade e fluidez, a entreajuda nunca foi uma ilusão, cada um agarrou a sua personagem como se o sucesso escolar disso dependesse.

Prova disso é ainda conseguir declamar, de memória, algumas das falas de Jokanaan, e de guardar estima por tudo o que refira Salomé. Por isso, não custa afirmar que Salome's Last Dance é, realmente, um filme que já vi(vi).

P.S.: Salome's Last Dance pode ser visto na íntegra aqui http://www.youtube.com/watch?v=ZMO4Qi4AFhc. Não contem a ninguém.

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Obrigada pela tua participação, Samuel!

5 comentários:

Sam disse...

Obrigado pelo convite, Inês, e parabéns a uma iniciativa que não só testou a minha memória, como também a capacidade de colocar a minha própria vida num texto.

Cumps cinéfilos :*

Anónimo disse...

Excelente texto! :)

Inês Moreira Santos disse...

Obrigada eu pela participação Samuel. :)
É um óptimo texto, sim sr.

O Narrador Subjectivo disse...

Antes de mais, como é que ainda não tinha reparado que o Samuel Andrade tinha um blog novo?! :O

Quanto ao texto, nunca vi o filme, mas gostei de ler a história. Estive envolvido em duas peças escolares, tendo actuado numa delas, e tenho alguns mixed feelings quanto à experiência também, lol.

Os Filmes de Frederico Daniel disse...

Não conhecia o filme