terça-feira, 1 de julho de 2014

O Filme da Minha Vida, por João Nuno Pinto

O Filme da Minha Vida
por João Nuno Pinto

Nunca gostei de listas. Sempre tive uma grande dificuldade em escolher o meu prato favorito, a minha cidade de eleição, as melhores férias, o filme da minha vida. Tirando as namoradas, por quem sempre me apaixonei louca e perdidamente elegendo-as imediatamente para numero 1 do mundo e universo (por mais efémera que fosse a eleição), todo o resto fazia parte de uma extensa lista de preferências e sempre achei que eleger um(a) em deterioramento de outro(a) seria uma falta de respeito por todas as outras coisas que de uma maneira ou de outra também eram, são e serão para sempre importantes na minha vida. Dito isto, a verdade é que aceitei o convite da Inês Moreira Santos e agora tenho mesmo que escolher um entre todos. Então que seja um que me surpreendeu e marcou profundamente num passado recente. Então que seja o Hunger, do Steve McQueen.

Estreado nos finais de 2008, Hunger é a primeira longa metragem do artista plástico Steve McQueen e retrata de uma forma brutal as últimas 6 semanas da greve de fome de Bobby Sands, desde a tomada de decisão até à sua morte. Estamos em 1981, na Irlanda do Norte, e o filme passa-se quase inteiramente dentro das paredes da prisão. Eu tinha terminado de filmar o América, também a minha primeira longa metragem, quando assisti ao filme e fiquei estarrecido com o murro no estômago que tinha acabado de levar. O filme era brilhante!, e eu senti-me o pior realizador do mundo pela comparação evidente... como era possível fazer um filme tão consistente e maduro logo na primeira obra? Ali não havia lugar para desculpas nem paternalismos geralmente associados às primeiras obras. Não, eu tinha acabado de assistir a um filme poderoso, maduro, brilhantemente filmado, que não teve medo de assumir riscos, quebrar convenções e criar momentos de verdadeira antologia cinematográfica. Ainda para mais dirigido por um fulano com o nome mais cool do mundo. Steve McQueen, não só não é irlandês, como eu pensava, como era um jovem britânico, negro, que fez todo o seu percurso como artista plástico. Como pode ele então dominar a técnica e a arte cinematográfica para ter feito um filme tão poderoso e verdadeiro sobre a questão irlandesa? Como pode alguém que à partida vem de um universo tão distante falar com tanta propriedade sobre um assunto tão delicado? Anos mais tarde tive a mesma experiência quando assisti a Lore (2012) de Cate Shortland, realizadora australiana que fez um maravilhoso filme sobre a questão da culpa e da mentira na ressaca da Segunda Guerra Mundial, através do ponto de vista de uma jovem adolescente nazi. Mais uma vez, alguém de fora a fazer um filme gigante sobre um tema difícil e sensível. O que une McQueen a Shortland é a extrema crueza e sensibilidade com que abordam estes temas, à partida tão incómodos. Sem cair em clichés, julgamentos ou moralismos eles olham o lado humano da questão, com todas as suas fragilidades, ambiguidades e beleza. A humanidade dos seus personagens contrasta com a monstruosidade do mundo que os rodeia. A beleza da sua cinematografia contrasta com a crueza do horror. E é isso que torna estes filmes tão desconcertantes.


Apesar de ser o seu primeiro filme, McQueen não teve receio em arriscar, em quebrar convenções e tudo aquilo que nos ensinam como o correcto na construção dramática. O personagem principal, brilhantemente interpretado por Michael Fassbender, só aparece depois do primeiro terço do filme – o que diriam a maior parte dos produtores que conheço se lhes apresentasse um guião assim?... Hunger é, na sua maioria, um filme de silêncios. No entanto tem um dos mais incríveis diálogos da história do cinema. Não só pelo diálogo em si e pela performance dos seus actores, como principalmente pela maneira como está filmado. Depois de mais de uma hora quase sem diálogos somos apanhados por uma torrente de diálogo entre Bobby Sands e um padre católico que o tenta demover da ideia da greve de fome. A cena é filmada em plano único, com a câmara fixa, durante cerca de 17 minutos. São 17 minutos de câmara fixa, olhando para dois actores sentados, imóveis, confrontando-se numa ininterrupta avalanche de palavras. E nós, enquanto espectadores, saímos sem nos apercebermos da sala de cinema e sentam-nos num teatro. O teatro da vida.

Hunger é um filme poderoso, visceral, bruto, trágico, feio e ao mesmo tempo lindo e brilhantemente fotografado, que acompanha de uma forma crua e íntima o lado humano de um conflito onde geralmente a tendência é abordar o lado político. E é exactamente aqui que reside a sua força. McQueen consegue mostrar beleza no meio do horror, onde as emoções e conflitos internos dos personagens sobrepõem-se à dimensão física das suas acções. É este olhar íntimo, intenso e cru, sem no entanto deixar de ter uma proposta artística vincada, que torna o filme tão poderoso e marcante. Não sei se é o filme da minha vida, mas é o filme que gostava de ter feito.

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João Nuno Pinto é realizador. Começou por realizar anúncios para televisão e videoclips, vencendo diversos prémios internacionais. Em 2008, a curta-metragem Skype Me marcou o seu início no cinema, e, em 2010, América foi a sua primeira longa-metragem, vencedora de diversos prémios em vários festivais nacionais e internacionais.

Agradeço ao João ter aceite o meu desafio!

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