sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Já Vi(vi) este Filme, por Gonçalo Trindade

Já Vi(vi) este Filme
por Gonçalo Trindade, antigo membro do Ante-Cinema, membro do Ouve-se e da Nervos

Quando a Inês me convidou para esta iniciativa, não me veio de imediato nenhuma escolha óbvia à cabeça. Não tenho, acho, nenhum filme que se encaixe em mim como uma luva, ou que represente por completo aquilo que sou ou o que a minha vida é; isto como quem diz que, basicamente, a minha vida se desse um filme acho que dava um filme muito chato. 

E se calhar até dava, não sei. Mas o filme que escolhi, pelas razões que já aqui vou tentar explicar, não é de todo chato – muito pelo contrário. O Almost Famous, do Cameron Crowe, é provavelmente o filme do qual, a nível de percurso de vida, me sinto mais próximo. Estou aqui a fazer este texto para o blogue da Inês, que conheci exactamente porque escrevíamos os dois sobre cinema, mas a verdade é que foi na área do jornalismo musical que sinto que tive maior impacto e que fiz mais. Comecei pelo cinema, com uns quantos blogues só meus, depois uns sites, e eventualmente a revista Focus e a Guestlist TMN onde efectivamente comecei a ganhar dinheiro e a  ver com muito orgulho "Gonçalo Trindade" a ser impresso em papel no final dum artigo. 


Foi curioso porque desde muito novo que sempre quis cinema. Tentei entrar duas vezes no conservatório (spoiler: não entrei, não gostaram de mim na entrevista), e foi só quando entrei no meu curso de terceira opção em segunda fase que comecei a interessar-me mais por outras áreas. Foi no primeiro ano de faculdade que um amigo me convidou para escrever para uma revista online que tinha (a The Sound of a New Generation, que acho que ainda está por aí pela net), que comecei a encontrar mais gente que, como eu, também gostava de devorar concertos e CD's, e foi daí que o bicho foi crescendo e crescendo. Ir a concertos com credenciais, esperar no final pelos músicos para tentar uma entrevista, ir a casa de músicos entrevistá-los e perceber que se é demasiado novo para beber aguardente (mas estava óptimo na mesma, João Coração, a sério) – dava por mim a fazer isso, a conhecer gente que parecia tão mais da cena e tão mais fixe que eu, e a começar a achar que, se calhar, a música é mesmo de salvar vidas e de dar uns quantos ordenados pelo meio. Comecei por uma revista online, fui passando a sites por convite (um deles o Espalha-Factos, de que a Inês faz parte e que foi talvez o site onde efectivamente me comecei a mexer mais), e houve um ano da minha vida ou assim em que a minha rotina se resumia perigosamente a chegar a ir às aulas, ir para um concerto, ir dormir às tantas da manhã para poder acabar a reportagem a tempo, e depois acordar de manhã para ir às aulas e repetir tudo; era muito cansativo, mas adorava isso. 

Todo aquele entusiasmo todo que o William tinha no filme eu também o senti na pele; toda aquele entusiasmo e toda aquela inocência também. Não acompanhei nenhuma banda em digressão, nem vi drogas ou orgias (mas também se tivesse visto provavelmente não dizia isso aqui, certo? Estou a brincar, não vi mesmo nada disso), mas escrevia a achar que as pessoas iam ler, que ia poder fazer vida daquilo, e que no final até ia ficar amigos de alguns músicos. A primeira aconteceu mais ou menos, a segunda não aconteceu de todo, e a terceira aconteceu por completo. 

Sabem perto do final do filme, quando o William volta para casa depois de não ter o artigo publicado? Eu fiquei um bocado nessa fase, sem a parte de no final haver o twist de ter um artigo como capa da Rolling Stone. A revista Focus fechou, a Guestlist TMN também, e às tantas o amor à camisola que tinha por escrever à pala para tantos sites começou a perder poder e o amor por outras coisas começou a ganhar (como, por exemplo, começar a perceber que há gente que liga demasiado a gostos musicais no geral, e que mais vale alguém ter bom coração que uma boa colecção musical; ou que andar em cima da cena musical e a descobrir músicas novas é fixe, mas arranjar um emprego e independência é melhor). Olho para o Almost Famous e vejo ali um jovem muito parecido ao jovem que já fui (jovem ainda sou, mas agora sou um jovem diferente), com o mesmo entusiasmo e a mesma paixão que eu já tive em muito mais quantidade que a que tenho agora; ainda adoro música, e ainda gosto de escrever (isto está a ser divertido), mas outras paixões foram surgindo e é preciso arranjar espaço e amor para todas. O filme de Crowe é, de certa forma, muito sobre uma certa fase da nossa vida que acaba por ter um fim normal e que dá lugar a uma fase melhor (pelo menos no meu caso). Ainda sinto aquele entusiasmo e aquela inocência toda, mas hoje em dia foco-a mais em outras coisas que não a música. O William provavelmente acabou a fazer vida do jornalismo musical – eu não. Arranjei outro emprego que adoro, e se calhar depois deste hei-de arranjar ainda outro noutra área completamente diferente. Nesse sentido, se calhar o Almost Famous até não é tanto sobre aquela particular fase em que escrevia que nem um doido e mais sobre as várias fases que provavelmente ainda vou ter. 


E, de certa forma, é também sobre o quão bom é ter uma coisa (a música, neste caso) que nos entusiasme ao ponto de querermos viver disso. Depois essa coisa passa, ou não resulta, e acabamos por achar outra; se calhar com o William também foi assim, e nós é que não sabemos. Mas, dê por onde der, essas paixões acabam por ficar e simplesmente vão perdendo um pouco a intensidade para dar lugar a outras; é um bocado como aquelas relações que acabam e no final sentimos que não foi desperdício nenhum e que ficam as memórias e um crescimento enorme. Ainda terei muitas, certamente, e no final cada uma há-de deixar as suas marcas. De certa forma, somos todos um bocado como o William: só queremos poder trabalhar na área que adoramos e dedicar-nos a isso por completo. Uns conseguem encontrar isso mais facilmente, outros não; outros encontram fora do emprego, até. Mas o que isso é vai mudando (pelo menos acho que agora, nos 20 e tal, tem mudado), até uma pessoa assentar por completo. O Almost Famous é, portanto, apenas parte duma viagem muito longa, e não o destino. E essa viagem é tal como o filme em si: muito, muito boa, e muito muito entusiasmante. Mas com menos calças à boca de sino, hoje em dia. 

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Obrigada pela tua participação, Gonçalo!