sábado, 15 de agosto de 2020

Crítica: A Criança Zombie / Zombi Child (2019)

"Écoutez monde blanc,
Mon rugissement de zombi"
Mélissa
(citando excerto de poema de René Depestre)


*8/10*

Os fantasmas da Revolução e da Colonização incorporam o filme de Bertrand Bonello, Criança Zombie, numa confrontação brutal entre colonizados, colonizadores, passado e presente, crenças, medos e feitiçaria.

Haiti, 1962. Um homem regressa dos mortos para trabalhar no mundo impiedoso das plantações de cana de açúcar. 55 anos depois, uma jovem rapariga de ascendência haitiana confidencia aos seus colegas um segredo de família, inconsciente das graves consequências deste acto. Uma história de terror contemporânea, baseada na realidade muito concreta do colonialismo francês no Haiti, a sua narrativa despoleta uma reflexão sobre racismo, imperialismo e memória cultural.


Para quem não está por dentro da História do colonialismo francês, o paralelismo França/Haiti pode ser difícil de digerir mas, a cada momento que passa, mais sentido faz, desembocando numa fenomenal sequência final, em que três espaços e tempos se entrecruzam para contar toda a história.

O Haiti foi durante anos a mais rica colónia francesa, a "pérola das Antilhas", como era conhecida. Mas poucos anos após a Revolução Francesa, os haitianos também quiseram Igualdade, Liberdade e Fraternidade, e em 1804 declararam a sua independência. Aí chegou a pobreza, com a França a pedir uma indemnização de 150 milhões de francos do Haiti, pelas perdas que tiveram, e que os haitianos demoraram 122 anos a pagar. A juntar às dividas sem fim, o país tem somado diversos desastres naturais - o terremoto de 2010 é aliás mencionado no filme de Bonello.

Baseado num caso real, onde o misticismo se junta à ciência, A Criança Zombie fala da escravatura e da herança dolorosa que os franceses deixaram no Haiti, através de um homem, privado da sua vida, e condenado a trabalhar, sem cessar; e da sua neta, que estuda em França, onde vive desde 2010, quando perdeu os pais.

Bonello cria A Criança Zombie com uma vertente muito politizada, mas fá-lo igualmente através de diversos elementos do género terror. Eis a metáfora do horror do colonialismo numa peça de ficção.


O choque de culturas demonstra as tradições ancestrais, o voodoo e misticismo associados do Haiti, contrapostos com a globalizada França dos dias de hoje - e aqui também há zombies, basta olhar para todas as jovens estudantes vidradas nos smartphones -, e curiosa sobre o oculto.

O horror vive muito do contraste cultural, mas igualmente das cores - vivas e brilhantes no Haiti, mais escuras quando vemos o mundo pelos olhos dos zombies; com menos contraste em França, onde os uniformes do colégio apagam a personalidade individual. A direcção de fotografia e a montagem são excelentes ao trabalhar o suspense, em ritmo crescente até ao final da longa-metragem.

As jovens protagonistas Louise Labeque (Fanny) e Wislanda Louimat (Mélissa) revelam uma maturidade imensa ao interpretar as suas personagens. Com um desempenho mais físico, Labeque conseguir ir da inocência à obsessão. Já Louimat é ponderada e enigmática, incompreendida pela maioria das curiosas colegas.


A Criança Zombie é um regresso às origens dos zombies, como seres privados de vontade própria - e longe dos maneirismos modernos -, num intenso e perturbador filme que convida menos a sustos e muito mais à reflexão histórica.

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