terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Crítica: Viagem ao Sol / Journey to the Sun (2021)

*8/10*

Viagem ao Sol, de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, é o resultado de muitos anos de pesquisa e entrevistas, cuja montagem ditou o rumo a seguir: o olhar das crianças austríacas sobre a guerra e a experiência que milhares delas tiveram no Portugal solarengo dos anos 40.

Para muitos será uma novidade, mas Portugal recebeu cerca de cinco mil crianças vindas da Áustria, logo após o final da Segunda Guerra Mundial, que ficaram alguns meses em famílias de acolhimento - na sua maioria abastadas -, de forma a recuperarem dos traumas físicos e psicológicos que o conflito lhes causou.

"Viagem ao Sol é uma reflexão sobre crianças em situação de conflito e pós-conflito, e a potência do seu olhar em revelar realidades obliteradas pelas narrativas oficiais. Tendo por base unicamente imagens de arquivo e testemunhos de antigas crianças austríacas enviadas no pós-guerra para Portugal, país neutral durante a 2.ª guerra mundial, o filme estabelece múltiplas ressonâncias com a Europa actual."

Do entusiasmo inicial por saírem da tristeza e destruição causadas pela guerra, as crianças seguiram de comboio e depois de barco - numa viagem menos prazerosa -, até chegarem a Portugal. Aí o espanto por pisar terra firme, num novo país cheio de sol e cor, mistura-se com a estranheza de serem "escolhidos, tal como gado", como refere a certo momento uma das crianças, pelas famílias de acolhimento. As meninas loiras de olhos claros eram as preferidas dos casais ricos, os restantes iam "sobrando" para os menos endinheirados e, perante os testemunhos que os realizadores reuniram, as experiências de cada um tinham as suas diferenças - das que foram tratadas como princesas aos que estavam desejosos de voltar a casa.

Ao longo dos meses, laços foram-se estreitando, fosse com os pais de acolhimento, com as criadas ou com os animais. E, ao mesmo tempo, as crianças deparavam-se com a pobreza do povo, com quem não se podiam "misturar". Apesar da tenra idade, também para elas as diferenças sociais eram óbvias e chocantes.

Viagem ao Sol mostra como o olhar mais inocente encontra as incongruências do regime salazarista, sem ser preciso saber que ele existe. No meio desta "boa acção", que foi uma arma propagandista do Estado Novo, as diferenças entre ricos e pobres, os privilégios de uns e a pobreza extrema de outros, não passaram em branco e ficaram na memória destas crianças que, mais de 70 anos depois, as recordam para o documentário.

Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias dão voz aos rostos das imagens da época e, através de imagens de arquivo, das institucionais aos filmes caseiros, juntamente com fotografias das famílias de acolhimento, reconstituem a viagem ao sol português.

O documentário confronta a plateia com o impacto deste olhar, na formação da memória individual e colectiva. E mostra como a guerra impacta para sempre a vida das crianças que têm a infelicidade de a viver, algo válido na Segunda Guerra Mundial e em todas as guerras actuais, onde são elas as maiores vítimas. 

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