segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Crítica: Retratos Fantasmas (2023)

"Eu amo o centro do Recife, tem um clima de quem foi abandonado sem grandes explicações"

Kleber Mendonça Filho

*8/10*

Imaginação e realidade fundem-se como provocação de Kleber Mendonça Filho no seu mais recente documentário Retratos Fantasmas, uma viagem espácio-temporal ao centro da cidade do Recife, no Brasil, entre a vivacidade dos tempos áureos e a decadência a que as décadas a têm vetado. Em cada recanto, um espírito do passado, uma memória e, principalmente, a resistência. Tudo isto, contado através do(s) cinema(s).

"Fruto de sete anos de trabalho e pesquisa, filmagens e montagem, Retratos Fantasmas traz o espaço histórico e humano como o personagem principal, revisitando-o através dos grandes cinemas que serviram como espaços de convívio durante o século XX".

O realizador divide o filme em três partes, sempre com a memória ao comando: 1.ª Parte: O Apartamento de Setúbal; 2.ª Parte: Os Cinemas do Centro do Recife; e 3.ª Parte: Igrejas e Espíritos Santos. Começa pelo espaço que lhe é mais próximo: a sua casa, onde viveu a maior parte da vida, um espaço privado que se tornou público como cenário de muitos dos seus filmes - não faltam aqui excertos deles, com O Som ao Redor a assumir um papel preponderante (e o espírito e latidos do cão Nico ainda tão presentes). Seguem-se os cinemas do centro do Recife, dos seus tempos áureos de salas cheias. E se, há algumas décadas, era uma cidade agitada e na moda - que até Janet Leigh e Tony Curtis a visitaram, nos anos 60 -, tudo esmoreceu, o dinheiro, que antes abundava, foi para outro lado. Recife ficou despida da alegria e do movimento, com o encerramento dos seus cinemas, um a um. Resta o resistente São Luiz para iluminar o centro e fazer sonhar.

A terceira parte de Retratos FantasmasIgrejas e Espíritos Santos, conduz a plateia pelos detalhes grandiosos do São Luiz, que continua a atrair espectadores, e foi ele mesmo construído no lugar onde antes estava uma igreja anglicana. Mas revisita também os antigos cinemas que são agora igrejas evangélicas (inevitável será lembrar que o lisboeta Cinema Império teve o mesmo fim), curiosas (e tristes) coincidências que o mordaz crivo do realizador não deixaria passar.

Destaque para um dos momentos mais comoventes da longa-metragem, em que o foco é Alexandre Moura, o projeccionista do Art Palácio que Kleber filmou nos seus tempos de estudante. Entre o trabalho árduo, as recordações históricas e a nostalgia que atravessa o ecrã, em vésperas de fecho do cinema, o seu testemunho é um valioso arquivo para reconstituir a História daquele espaço.

Através de inúmeras imagens de arquivo, entre filmes e fotografias, Kleber Mendonça Filho mostra os mesmos locais ao longo dos tempos, a sua evolução ou desaparecimento - e os fantasmas que continuam a pairar, enquanto houver memória. Porque os filmes são capazes de (re)construir uma casa ou uma cidade e acrescentar-lhes um pouco de fantasia só torna tudo mais misterioso e apaixonante.

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