sábado, 28 de dezembro de 2013

O Filme da Minha Vida, por Vicente Alves do Ó

MARILYN E O DESERTO

por Vicente Alves do Ó


Aos 16 anos só ouvimos o que queremos, nunca gostamos de nada, temos opinião formada sobre tudo, estamos sempre do contra e raramente concordamos com alguém. De preferência, gostamos do que mais ninguém gosta, somos exclusivos e acreditamos piamente que o mundo nos ouve, que estamos no centro do seu movimento, da sua vertigem, do sol que brilha só para nós. Por norma, somos incompreendidos, ninguém nos percebe, não percebemos ninguém, fechamo-nos em enigmas que raramente sabemos explicar, vivemos paixões secretas, ouvimos música deprimente e sonhamos morrer diante da uma plateia vasta que há-de chorar o nosso desaparecimento. Enfim, adolescências vivas e incandescentes, como devem ser todas as adolescências. Depois crescemos (alguns de nós) e tudo passa. Mas esses anos de formação também servem de casa para muito daquilo que haveremos de ser. É quando a maior parte de nós descobre a literatura dita “séria”, o cinema dito “sério”, a filosofia sempre “séria” e a noite (muito pouco séria). Descobrimos o nosso mundo e muitos de nós acabaremos por moldar os nossos gostos aí, nessas primeiras aparições marcantes e acima de tudo emocionais – mesmo que depois se expliquem ou tratem intelectualmente. Não se pode gostar de nada sem o primeiro contacto emocional – caso contrário, não é gostar, é apenas uma afectação racional e opinativa. 

Nesses 16 anos vi alguns dos filmes que acabariam por formar o meu sentido de cinema, de arte, de humanidade. Um deles foi The Misfits, em português: Os Inadaptados. Canto do Cisne para três mitos do cinema americano. Marilyn Monroe, Clark Gable e Monty Clift (que ainda filmaria, mas este terá sido o seu último grande momento no grande ecrã). Este filme assinado por John Huston e escrito pelo marido de Marilyn - Arthur Miller - ganhou contornos de assombração. Quer pela metáfora, quer pela morte, quer pela estranha sujidade que sempre andou arredada dos grandes estúdios. A história deste grupo de inadaptados do mundo acabaria por ser repetida até à exaustão, noutros universos, países, cinematografias, mas aqui, entre o mainstream e o indie, respirava-se acima de tudo um talento superlativo dos actores e um texto digno de qualquer celebração literária. Tudo neste filme batia certo nessa idade da revolução. E até o preto e branco era perfeito para quem nos anos 80 ouvia The Cure, Depeche Mode e vestia única e exclusivamente preto comprado na loja dos Porfírios em Lisboa. 

Um filme pode marcar-nos pelas mais variadas razões. E nem sempre se prende pela sua qualidade ou importância. Muitas vezes, as questões que nos tocam são misteriosas, profundas, insondáveis – só anos depois nos apercebemos do porquê. Um filme como este, hoje considerado um clássico da 7ª arte, mas na altura tão maltratado (como aconteceu com tantos outros) representa acima de tudo a liberdade de não saber nada da vida, de não saber donde se vem, onde se está, para onde se vai – como numa velha canção do António Variações. E essa inquietação sufocante atravessa todo o filme e culmina num deserto despovoado e cuja vida se resume a um bando de cavalos em perigo e em extinção: como um certo cinema, como fantasma dum cinema e duma forma de ver e viver o mundo. Os Inadaptados, como todos nós, com 16 ou com 41 nos, vive dessa existência febril que é a vida. Não a vida real, mas a vida interior. A vida verdadeiramente verdadeira – a que nos assola todos os dias dentro de nós e que não encontra espaço no mundo, no quotidiano, na comunidade. É um filme de alma, invisível, frágil, à beira da perdição. 

Os anos passaram e este filme ficou comigo. Volta e meia, volto a ele – como quem volta a casa ou a visitar uma pessoa que se conhece bem, que se ama. Porque este filme, se ele me ensinou alguma coisa, foi exactamente isso. A amar os filmes como quem ama pessoas – cheias de falhas, de erros, de defeitos e no entanto, com as qualidades precárias e belas que só um ser humano pode ter. E esse é o milagre da humanidade. E esse é o milagre do cinema. 

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Vicente Alves do Ó é realizador, escritor e argumentista. Escreveu argumentos para telefilmes da Sic, e, após três curtas-metragens, surge, em 2011, a sua primeira longa-metragem: Quinze Pontos na Alma. O seu mais recente filme data de 2012 e é o muito premiado Florbela, protagonizado por Dalila Carmo. Também o ano passado, Vicente lançou o seu primeiro romance, Marilyn à beira-mar.

Agradeço ao Vicente ter aceite o meu desafio.

2 comentários:

O Narrador Subjectivo disse...

Nunca vi, mas fiquei com a curiosidade aguçada. O Montgomery Clift em especial é uma figura que me fascina.

Anónimo disse...

Vi-o há muitos anos (teria eu também 16? muito perto disso pelo menos) e marcou-me imenso. Como conto fazer um ciclo Marilyn em 2014, fiquei desde já com vontade de apressar o visionamento. :)