Já Vi(vi) este Filme
por Hugo Mamede do Passeio de Livros
Lost in translation afagou-me os nervos. Eu que nem sei falar de filmes, sei, no entanto, que me andava a chatear o ritmo histérico de tudo o que era cinema em meu redor, as odes heroicas, o amor romântico, os ideais oitocentistas de que as produtoras mais importantes do século XXI não queriam fazer o desmame. E então chegou-me, numa noite felizmente melancólica, a doce Charlotte e o desencantado Bob Harris e neles suspendi a crença de que o cinema é uma coisa à parte da vida real…
Bebes comigo um Vodka Tónico?
Bob era eu, naquela noite no bar. Com socalcos no rosto em vez de rugas e semblante de uma tonelada em vez do natural cansaço da idade. A única forma de liberdade resgatei-a do fundo das calças puídas desta coisa a que chamamos a natureza humana: um ancestral sentido de humor. Foi assim que falei com ela pela primeira vez, por palavras que eram de um desprezo feliz por este planeta alienígena. Estou a planear uma fuga daqui, queres vir comigo? Prometo que ficamos livres num instante!, disse-lhe eu, já adivinhando o desconforto que também lhe ia na alma. Claro que sabíamos que o problema era não haver sítio para onde fugir, foi por isso que nos rimos a sério e que continuámos a habitar aquele lugar.
Que língua falas, querida Charlotte?
Eu só sabia que ela me compreendia, tal como muitos animais sensíveis podem fazer (os alienígenas não). Só não contava que ela comunicasse comigo no meu próprio idioma. Claro que a Charlotte tinha namorado (também eu tinha uma mulher), claro que a Charlotte tinha pelo menos metade da minha idade (também aquilo não era mais do que uma espécie de amor fraternal), mas tudo isso não impediu que ela me falasse as palavras raras que fazem vibrar as entranhas, tal como acontece com um velho diapasão que afasta de si um manto de pó e torna à vida porque alguém o soube tocar… foi então que se produziu entre nós alguma coisa de música, um rastilho de significância.
Antes de te conhecer, Charlotte, era desterrado; depois de te conhecer, Charlotte, fui de cada parte onde estivemos.
Lembras-te, por exemplo, daquele bar de strip onde os teus amigos combinaram um encontro com o grupo todo e que nos causou uma admiração fabulosa? Se calhar, nem foi tanto por causa das mulheres que se metiam em posições de árvores retorcidas no inverno, mas porque, aos olhos um do outro, já não nos víamos como estranhos. E lembras-te daqueles chanfrados que nos perseguiam com umas armas de plástico que disparavam balas de borracha, por qualquer motivo que não nos cabia a nós compreender? E lembras-te de corrermos juntos para lado nenhum, bêbedos da alegria de estarmos juntos e do mundo não importar mais do que aquelas máquinas de Pachinko por onde desapareciam copiosas bolas de metal que não davam prémio nenhum?
Mas um dia beijei-lhe o canto dos lábios. Sim, beijei-lhe o canto dos lábios. Não há prelúdio para os dilúvios. Da lavagem de detritos ficou um humano de pleno direito. E ela beijou-me de volta o canto dos lábios, não sei se por falta de jeito ou porque descerrá-los provocaria uma falha tectónica num ecossistema que não era o nosso. Assim, só nos amámos por um instante, sem testemunhas nem vítimas. E quando chegou o momento de partir para a minha base de exploração espacial, longe daquele planeta e em direcção ao meu não menos incompreensível, saí do táxi para segredarmos uma última coisa ao ouvido um do outro que mais ninguém atrás dos ecrãs do cinema poderia compreender. Podia tentar eu lembrar-me do que era e talvez traduzir isso por palavras, mas mais vale dizer que era qualquer coisa de música. Pelo menos disso tenho a certeza.
__________
Obrigada pela tua participação, Hugo!
1 comentário:
Ainda não vi o filme, não me puxa muito mas um dia irei ver.
Enviar um comentário