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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Entrevista a Bruno Gascon, realizador de Carga: "Tentei criar uma sociedade dentro de uma rede de tráfico de seres humanos"

Bruno Gascon gosta de temas difíceis e a sua primeira longa-metragem, Carga, faz jus a isso mesmo, é sobre o tráfico de seres humanos. Com duas curtas no currículo cinematográfico, o realizador estudou em Amesterdão e, de regresso a Portugal, começou por fazer documentários e programas de televisão sobre temas sociais. Agora, nos seus filmes, são esses os temas que continua a preferir.

Bruno Gascon - Foto: Luís Sustelo
O Hoje Vi(vi) um Filme esteve à conversa com Bruno Gascon (B.G.) sobre Carga. O filme estreia nos cinemas a 8 de Novembro.

Escolheste logo um tema muito forte para a tua primeira longa-metragem...
B.G.: Sim, eu gosto de temas fortes e posso já adiantar que a minha próxima longa vai ter um tema forte também. Posso dizer que é um tema actual. Gosto de explorar o pensamento humano e a mentalidade em relação a certo tipo de temas. Às vezes, as pessoas gostam de olhar para o lado e não enfrentar os problemas. A sociedade só evolui se tu falares sobre esses temas e sendo, no meu caso, ficção, acho que é uma forma de passar a mensagem também.

Como foi todo o processo da construção do argumento, as pesquisas, etc.?
B.G.: Em Amesterdão, entrei logo em contacto com este tipo de problemas. Existe aquela ideia de que lá, no red light [district], a prostituição é uma coisa livre, mas o que a maior parte das pessoas não sabe é que muitas daquelas mulheres são traficadas. Depois voltei [para Portugal], encontrei várias histórias sobre isso e decidi contar, na minha primeira longa, um tema pesado que é um problema global. Sobretudo, tentei demonstrar que não é só um problema de terceiro mundo, como ouvi muitas vezes, e as pessoas nem sequer tinham a noção disso. Muitas vezes, esse problema está mesmo ao nosso lado, no nosso vizinho, nos nossos amigos, na nossa família.

Vocês falaram - ou pelo menos a Joana Domingues [produtora] falou - com vítimas de tráfico humano, não foi?
B.G.: Sim, eu ouvi histórias até porque não tive acesso a essas pessoas. As mulheres que foram traficadas são muito protegidas e vivem em casas protegidas. Estão muito desconfiadas e é-lhes difícil confiar nas pessoas. A minha pesquisa foi muito por aí, ter acesso às histórias e tentar recriar a realidade o mais cruel possível. O que faço muitas vezes, seja uma traficada, seja um rei do tráfico, é meter-me nos pés da pessoa e tentar perceber o que é que eu faria naquela situação. Tal e qual fui fazendo nas minhas curtas - a curta anterior é sobre suicídio e a primeira é sobre esquizofrenia. [Em Carga] Tentei criar uma sociedade dentro de uma rede de tráfico de seres humanos. Aquelas personagens têm características comuns a todos nós e o que introduzi foi esse problema global. Temos, por exemplo, o António, que é interpretado pelo Vítor Norte que é um camionista e é uma personagem que está numa situação limite. Eu gosto de pôr as personagens nessas situações limite. Ele faz aquilo por dinheiro ou desculpa-se com o problema do dinheiro, mas depois vamos perceber que isso o vai atormentando ao longo do filme.


Ia agora falar-te sobre isso. As tuas personagens são muito ambíguas... Querias que as pessoas se identificassem? Que sentissem como se fossem personagens quase reais?
B.G.: Sim, tentei dar o máximo de realidade às minhas personagens e tento sempre fazer isso. Porque acho que não existem bons ou maus. Existe todo um lado cinzento que todos temos, no nosso dia-a-dia. Temos muitas camadas. Todos já tivemos más acções, todos já tivemos boas acções e é isso que tento tirar daquelas personagens. E, como o filme retrata, todas têm uma carga, aquela carga emocional é trazida por todas elas, tal como nós, na nossa vida, temos uma carga. Todos temos problemas, todos fazemos boas acções. Se uma pessoa é mais retraída ou fala menos é porque, provavelmente, existiu alguma coisa ao longo da vida dela que a tornou assim. E é essa experiência que eu quero que as personagens tenham, sejam elas boas ou más.

Porque aqui até com os mais mauzões nós simpatizamos ligeiramente, não é?
B.G.: Sim, no fundo, eles também são pessoas e, de certa forma, também têm boas acções. Por exemplo, o Viktor, que é protagonizado pelo Dmitry Bogomolov, é o chefe da rede de tráfico mas fá-la funcionar como uma empresa. Ele não deixa de ser um ser humano que teve problemas no passado, tem o tal background e essa carga emocional sobre ele também. O Dmitry deu-lhe um cunho muito pessoal. O próprio Dmitry foi criando aqueles movimentos e aquela personagem de acordo com o que fomos falando. Aquela rede já era uma coisa que vinha da geração anterior, é um negócio de família e o Viktor sempre se sentiu subjugado pelo pai. Não queria cometer os mesmos erros que o pai, porque ele era muito emotivo, e o Dmitry é uma pessoa mais fria, mais manipuladora, e quis demonstrar que era melhor do que o pai.


Vamos passar para a Sara Sampaio. Como surgiu a oportunidade trabalhar com ela?
B.G.: Falei com ela, ela leu o guião, disse-me que o tinha lido numa viagem de avião, que tinha adorado, que existia violência no filme, é verdade, mas que não era gratuita, tinha um sentido. Quando lhe expliquei a personagem dela e que queria que ela fosse a cara e a imagem de todo aquele grupo de pessoas, ela aceitou na hora. As pessoas estão sempre à espera de ver a Sara modelo e aqui é um registo completamente diferente. A Sara aqui não está embelezada, não está a vestir roupas de passerelle, de várias marcas, a Sara aqui é a Sara actriz e as pessoas vão ficar surpreendidas com o resultado.

E relativamente aos outros actores? Alguns já conhecias, como por exemplo o Duarte [Grilo]...
B.G.: Na verdade, o único que eu conhecia era o Duarte. Todos os outros foram contactos feitos a seguir. Quando escrevi o guião já tinha pensado em todos aqueles actores para aqueles papéis. Sendo uma primeira longa-metragem, eu tinha sempre aquele receio "eles não vão aceitar, não me conhecem de lado nenhum, é uma primeira obra", mas tal e qual como a Sara, assim que eu falei uma vez, todos eles aceitaram. Ou seja, foi das partes mais fáceis, ter aquelas pessoas, aqueles actores enormes a interpretarem estes papéis. Fiquei com uma óptima relação com todos eles. Foi isso que me surpreendeu de certa forma, porque eu estava habituado a ver na televisão, no cinema, no teatro todas aquelas pessoas e ver aqueles nomes a trabalharem contigo e a serem pessoas extremamente humildes, trabalhadoras... Senti-me honrado por virem fazer este filme comigo.

Como foi trabalhar com eles?
B.G.: Foi facílimo. Por exemplo o Vítor Norte, que já tem muitos anos de experiência, é das pessoas mais humildes e com um nível de exigência enorme. Está sempre muito preocupado, em todos os takes, em todos os planos, se está bem ou não. Com a Rita [Blanco] eu aprendi muito. A Rita é um poço de energia. Estar quieto ou mal-disposto ao pé da Rita é impossível. Ela é uma pessoa extremamente inteligente e ensinou-me muito sobre cinema. É incrível... A pessoa que mais me surpreendeu, na verdade, foi a Michalina [Olszańska]...

E eu ia perguntar-te como é que a escolheram...
B.G.: É uma história curiosa. Quando chegou a altura de escolher a personagem principal eu estava à procura de alguém que falasse russo e que tivesse alguns traços russos. Quando escrevo os guiões já imagino as características das personagens e quando vi a primeira curta da Michalina achei que ela tinha as características ideais e que se ia enquadrar no papel. Falei com a Joana Domingues, que é a produtora, e disse: "olha, acho que é esta rapariga", e ela disse: "mas tens a certeza? não querias escolher uma pessoa russa? ela é polaca" e eu disse: "tenho a certeza absoluta que é esta rapariga". Mandámos-lhe uma mensagem pelo Facebook e ela pediu para enviarmos o guião. Passado um dia, mandou-me um testamento enorme a dar-me uma dica, que não posso dizer para não criar spoilers do filme. Entretanto, veio cá três dias, nós falamos um bocadinho e depois eu e a Michalina criamos uma conexão enorme e, hoje em dia, ela é quase das minhas melhores amigas. É uma pessoa extraordinária além de, para mim, ser das mais talentosas da geração dela. Tive o Miguel, o Vítor que estavam a vê-la contracenar e até eles ficaram surpreendidos como é que uma rapariga com 25 anos consegue ter aquela capacidade, para além de ela ser um prodígio. Já escreveu livros, aprendeu a tocar violino aos seis anos de idade... Mas foi realmente a pessoa que mais me surpreendeu neste filme.


Nota-se no teu filme um pouco a estética que associamos aos filmes europeus - e é europeu, é português. Foi intencional? Tem a ver com as tuas influências cinematográficas?
B.G.: Também tem um bocadinho a ver com as minhas influências mas é a primeira vez que me dizem isso e que me fazem essa pergunta. Neste momento ainda estou à procura de encontrar um estilo próprio, mas há coisas que vou sempre fazendo e isso tem a ver com as influências que tenho. Por exemplo, utilizo muito planos centrados e o Kubrick utilizava muito as perspectivas. Vejo cinema, seja ele europeu, seja ele americano. Sou uma pessoa que gosta realmente de cinema, vejo do mais autoral ao mais comercial que possas imaginar. Gosto de Kubrick, Hitchcock, Polanski... Quando vou ao cinema gosto que o filme me diga alguma coisa e poderá ser essa a explicação para eu gostar tanto de temas fortes. Gosto muito de tudo o que seja sobre a Segunda Guerra Mundial, sobre os judeus. Gostei muito de O Pianista, Os Falsificadores... Também gosto muito de cinema nórdico. Utilizam muito a técnica fria, escura, é uma coisa com que me identifico. Tens a saga Millennium ou Lars von Trier, têm muito esse lado negro. Acima de tudo quero passar uma mensagem, mesmo que essa mensagem seja negra. O mundo não é um mundo cor-de-rosa. As pessoas andam um bocadinho adormecidas e tu às vezes tens de levar aquele murro no estômago para que te apercebas que aquela realidade existe. E, se calhar, só assim é que as coisas vão mudar.

Tens aqui um filme feminista?
B.G.: Sim, pode dizer-se que sim. Tem de se começar a retirar a ideia de que só os homens têm personalidades fortes e são as pessoas fortes num filme. Até porque, muitas vezes, uma mulher é muito mais complexa do que um homem e acho que isso devia jogar a favor das pessoas que fazem cinema. Porque é que se dão sempre papéis fortes a homens? Apesar dos homens [em Carga] serem a rede de tráfico, o papel duro, físico, as mulheres têm um papel muito mais complexo e quando as pessoas virem o filme vão perceber que quem domina são as mulheres. A ideia foi, de certa forma, inverter os papéis. As mulheres aqui são traficadas, são frágeis mas o frágil não implica que as pessoas sejam fracas. Deve haver uma igualdade entre todos e a sociedade tem de evoluir para isso. Fala-se muito de feminismo e do #MeToo mas acho que ainda existe um largo caminho para isso acontecer. Não é uma questão das mulheres serem mais do que os homens mas de serem iguais. Ponto final. Tanto no cinema como na nossa sociedade as coisas devem ser igualadas. Este filme é um filme mais feminista, mas também foi com esse intuito, de mostrar às pessoas que apesar de serem frágeis, as mulheres também são extremamente complexas e, na verdade, são o sexo forte.

E é curioso porque surge no momento certo...
B.G.: Foi um timing, calhou. Quando começamos a gravar foi quando rebentou o #MeToo... Calhou. Mas é uma coisa que deve ser falada e temos de caminhar para isso. E acho que a sociedade só tem a ganhar.

Criaste um filme muito internacional, e não só pelo número de línguas em que é falado, quantas são?
B.G.: Três. Inglês, português e russo. Essa linguagem também funciona um bocadinho como uma personagem, porque tens muitas falhas de comunicação ao longo do filme. Pessoas que só falam russo, pessoas que só falam inglês, pessoas que falam português, mal falam inglês e nem sequer falam russo... e estas falhas de comunicação acontecem no nosso dia-a-dia e têm também a ver com a cultura que temos. Tentei criar um filme internacional, e como o tráfico de seres humanos é um problema global, tentei dar-lhe esse realismo. Estamos em Portugal mas, com a Internet, temos acesso a qualquer parte do mundo. Tentei que as pessoas percebessem que esta realidade existe em Portugal, existe na Rússia, existe em todo o mundo.

Criaste uma Torre de Babel...
B.G.: Tentei. Na verdade, a tentativa foi essa, criar um microcosmos, em que se perceba que existem varias pessoas da nossa sociedade metidas lá dentro, não só no nosso país mas no mundo inteiro. Tentei recriar um mundo ali.


Que motivos vão levar o público às salas de cinema para ver o Carga?
B.G.: Acho que um dos motivos será... Pergunta difícil essa! um dos motivos é o facto de termos um leque de actores fantástico. Outro é o facto de, apesar de ser um drama, também tens muitas situações de tensão. Também pela estreia da Sara Sampaio, como é óbvio. Pelo tema, que é o tráfico de seres humanos e está bem mais perto de nós do que podemos pensar. E porque é um filme português e espero que as pessoas possam dar uma oportunidade, porque o cinema português está a evoluir cada vez mais. Tem de se tirar aquele estigma de que o cinema português é chato e aborrecido.

Na Comic Con Portugal, disseram que já tinham vendido o filme para alguns países. Quais?
B.G.: Já vendemos para a China, existe interesse do Japão, da França, e já fomos vendidos para os Estados Unidos e para o Canadá. Para já é só, mas vamos passar na Rússia e no Luxemburgo, entretanto.

Queres que o Carga seja um filme activista?
B.G.: Boa pergunta. O que eu quero é que o filme chegue ao máximo de pessoas possível, que as pessoas vão ver e que tenha as salas cheias, não vou dizer que não. Mas, acima de tudo, quero que o filme passe uma mensagem, e essa mensagem tem a ver não só com o tráfico de seres humanos, como com o nosso dia-a-dia. Existem coisas subliminares que estão lá colocadas, que não são sobre o tráfico de seres humanos.

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