quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Crítica: Atlantique (2019)

*8.5/10*



Atlantique, de Mati Diop, é um romance sobrenatural, centrado nas mulheres, na pobreza e na injustiça social. A estreia da realizadora nas longas-metragens de ficção carrega uma aura de encantamento singular e fantasmagórica, e coloca a imaginação ao serviço de uma história com muito para explorar.

Na costa atlântica, uma torre futurista prestes a ser inaugurada eleva-se sobre um subúrbio de Dakar. Ada (Mama Sane), de 17 anos, está apaixonada por Souleiman (Ibrahima Traoré), um jovem trabalhador da construção, mas está prometida a outro homem. Certa noite, Souleiman e os seus colegas deixam o país, aventurando-se nas águas do Atlântico em busca de um futuro melhor, deixando a jovem destroçada. Dias depois, um incêndio arruína o casamento de Ada e uma febre misteriosa espalha-se. Ada não imagina que Souleiman regressou.


O lugar da Mulher na sociedade senegalesa, a tradição muçulmana e a pobreza extrema de uns que contrasta com a riqueza de outros - algo bem visível na paisagem de Dakar, com a torre futurista em contraste grotesco com a pobreza do bairro onde a acção acontece - são temas centrais em Atlantique. Há milhões gastos nas obras modernas e dezenas de trabalhadores sem receber o ordenado há meses. O casamento com um homem rico pode ser a única alternativa para uma mulher pobre mudar de vida e, para outros, a única solução é a imigração, num barco de pesca, rumo à esperança europeia - ou à morte.

Depois do forte realismo social nos momentos iniciais do filme, são os solâmbulos nocturnos, quais zombies activistas, o primeiro elemento a despertar-nos verdadeiramente para a singularidade de Atlantique. Na sua maioria jovens mulheres - com uma excepção masculina que o desenrolar da acção justifica -, são elas quem consegue fazer justiça, numa vingança aterradora de quem roubou os homens que morreram no mar, sem dinheiro, nem futuro.


Os espíritos não podem partir em paz sem ajustarem as contas com o mundo dos vivos, sejam movidos por dívidas por pagar, garantia da sobrevivência de quem se deixou para trás, ou por amores interrompidos, que merecem uma despedida feliz.

E, no mergulho nas águas do realismo mágico deste Atlantique, a direcção de fotografia é capaz de planos inesquecíveis - em especial no bar junto à praia, num jogo de luzes e espelhos, romântico e fantasmagórico, que dificilmente cairá no esquecimento.


Mati Diop traz-nos um filme feminino, feminista e socialmente responsável, que espelha desigualdades, mas também é sinónimo de esperança - e muita magia.

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