sábado, 9 de outubro de 2021

Crítica: A Metamorfose dos Pássaros (2020)

"A linguagem dos pássaros só se revela àqueles que deixam de ter corpo"

*9/10*

Catarina Vasconcelos vem afirmando o seu lugar enquanto exímia contadora de histórias, pelo menos e até agora, suas e da sua família. A Metamorfose dos Pássaros é a sua primeira longa-metragem, dotada de uma criatividade e intimidade pouco comuns, numa fusão de nostalgia, saudade e esperança.

Na curta-metragem que marcou a sua estreia como realizadora, Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, Catarina Vasconcelos anunciava ao que vinha: a história de um país e de uma família, contada através de cartas trocadas entre a própria e o irmão, fotografias e locais. A Metamorfose dos Pássaros surge como sucessor natural, mostrando como a morte pode criar laços nunca antes descobertos entre pai e filha.

"Beatriz e Henrique casaram no dia em que ela fez 21 anos. Henrique, oficial de marinha, passava largas temporadas no mar. Em terra, Beatriz, que aprendeu tudo com a verticalidade das plantas, cuidou das raízes dos 6 filhos. O filho mais velho, Jacinto, é meu pai e sonhava poder um dia ser pássaro. Um dia, subitamente, Beatriz morre. A minha mãe não morreu subitamente, mas morreu quando eu tinha 17 anos. Nesse dia, eu e o meu pai encontramo-nos na perda da mãe e a nossa relação deixou de ser só a de pai e filha."

O lugar da mulher na sociedade (em especial antes do 25 de Abril de 1974), a infância e o primeiro impacto da percepção da morte, a adolescência e primeiras descobertas, o início da vida adulta e o choque da falta de liberdade de expressão e de pensamento que se vivia no Estado Novo. Mais uma vez, a História de Portugal cruza-se com a História da família da realizadora. As imagens contam a História, as palavras relatam o quotidiano da casa de uma mãe com seis filhos, ao marido ausente, no mar. 

O mergulho nas memórias que uma casa guarda, ao longo de décadas de vida em comum, traz razões, reflexão, imaginação. E o ciclo da vida, que por vezes se repete, mesmo que de formas distintas, pode unir na dor e na experiência. O papel da Mãe na vida dos filhos; uma mãe árvore, qual mãe Natureza; a incapacidade de qualquer filho lidar com a ausência da figura materna, e a luta que trava com essa ideia; este filme transforma-se e transforma as emoções de quem o vê, tal como a antiga invenção de uma "metamorfose dos pássaros", que tranquiliza e apazigua tudo o que é impossível de explicar.

E é com duplos sentidos, complementando as palavras com as imagens (filmadas em 16mm como a memória pede) - as metáforas que Catarina tanto gosta -, os espelhos sorrateiros que se escondem na natureza, as fotografias, os quadros, os cortinados, a montanha mais alta, a árvore caída, as plantas que ganham terreno, e até a desconstrução, a certo momento, numa espécie de metacinema, tudo se une e reúne na Odisseia da família da realizadora, intitulada A Metamorfose dos Pássaros. Confronta-se a vida, a morte e tudo o que não se vê, através de memórias, objectos e alguma imaginação.

Catarina Vasconcelos consegue unir o experimental ao narrativo com sensibilidade e criatividade sem fim. Na sua primeira longa, a realizadora avança, sem impasses, e com a segurança de uma veterana.

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