sábado, 5 de março de 2022

Crítica: Casa Flutuante (2022)

"E agora, minha neta, está na hora de você conhecer o Mundo."

Araci


*7.5/10*

Casa Flutuante marca o regresso de José Nascimento à ficção, numa alegoria entre o passado e o presente de Brasil e Portugal. Colonizadores contra índios, fazendeiros e poderosos contra a floresta e suas tribos: ganância vs. Natureza.

Partindo das consequências da devastação da Amazónia, José Nascimento e Ana Pissarra criam "a história de Araci, uma índia que viu a sua comunidade e a sua cultura serem destruídas na Amazónia. Araci vai viver para o Alentejo, terra do seu marido, sonhando um futuro melhor para a neta de ambos, Joana. Araci é guardiã de valores culturais que não têm correspondência no novo território português. O lar de Araci desfaz-se uma segunda vez e ela reinventa à sua volta um microcosmo onírico onde verá crescer Joana. Ao mesmo tempo que este universo resguarda a neta do mundo exterior, também lhe fecha um futuro que ameaça ruir a qualquer momento."

O rio Guadiana transforma-se no Amazonas, e as suas margens servem a reconstrução de rituais e da espiritualidade da tribo da protagonista, tão desamparada numa zona que nada lhe diz. Araci vive atormentada pela perda da filha, pelos ataques aos índios brasileiros e pela destruição dos seus direitos e da floresta. E tão longe do seu povo, também no país do marido a índia não está segura. A deflorestação no Brasil encontra paralelo na especulação turística em Portugal.

O pequeno sentimento de pertença que nutria por Mértola desaparece com a morte do marido - a âncora que a prendia ao novo lar - e, sem raízes que a firmassem à terra, muda-se para a Casa Flutuante fixa à margem do rio, e que dá título à longa-metragem, e onde é quase autossuficiente, com uma ligação à Natureza que pretende transmitir à neta, Joana.

Eis que surge o maior e mais constante dilema - também para a plateia - de Casa Flutuante: qual a melhor forma de proteger e educar Joana? A jovem incorpora as descobertas do final da adolescência, entre o amor e a procura das suas raízes e qual o seu papel na luta pelos direitos do seu povo. Afinal, onde pertence? 

José Nascimento tira partido das fabulosas paisagens de Mértola e do Guadiana, ao mesmo tempo que capta planos quase impressionistas, onde reflexos e sombras tornam todo o cenário ainda mais intemporal e onírico, e onde impera também algum realismo mágico. O filme viaja constantemente entre o contemporâneo e as tradições ancestrais das tribos da Amazónia, entre os sonhos e os espíritos em que Araci crê e adora.

Casa Flutuante deixa-nos num limbo entre as origens e o sentimento de pertença, num filme que transcende fronteiras, crenças e possibilidades, através de uma aura mística impossível de catalogar.

4 comentários:

Teresa Isabel Silva disse...

Parece ser interessante, confesso que ainda não tinha ouvido falar, mas vou tentar ver em breve!

Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

Inês Moreira Santos disse...

Recomendo muito, Teresa. :) Obrigada pelo comentário.
Cumprimentos cinéfilos.

Joana Rodrigues disse...

Fascinante! Uma alegoria que nos transcende.

Inês Moreira Santos disse...

Sem dúvida. Tenho pena que não tenha tido a visibilidade que merecia quando estreou nos cinemas.
Obrigada pelo comentário, Joana.
Cumprimentos cinéfilos.