sábado, 26 de março de 2022

Crítica: Drive My Car (2021)

"We must keep on living."

Yûsuke Kafuku

*8.5/10*

Ryûsuke Hamaguchi conduz-nos pela estrada sinuosa das emoções em Drive My Car e, na sua aparente simplicidade, chega aos mais profundos sentimentos, dentro e fora do ecrã.

As três horas de filme propõem reflexão, introspecção e, todavia, nunca monotonia. Se, por um lado, uma morte precoce vem mudar a vida de várias personagens e o foco da acção, por outro, o Teatro - o texto e as palavras - tem um papel central na exorcização dos fantasmas que se teima em não deixar partir.

Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), actor de teatro e encenador, é casado com a argumentista de televisão Oto Kafuku (Reika Kirishima). "Subitamente, ela morre e deixa para trás um segredo. Dois anos depois, ainda incapaz de lidar com a perda, Yûsuke assume o cargo de director num festival de teatro em Hiroshima, para onde viaja de carro. Lá, conhece Misaki que passa a ser a sua motorista particular. Misaki fala pouco, mas durante o tempo que passa com ela, Yûsuke aprende coisas que até então ignorava."

Ryûsuke Hamaguchi e Takamasa Oe (que adaptam um conto de Haruki Murakami) constroem uma narrativa contida, onde todas as personagens vão surgindo em crescendo no decorrer do filme: aos poucos, exteriorizam emoções e revelam segredos. Os 40 minutos antes dos créditos iniciais, introduzem a relação de Yûsuke e Oto. Depois disso, o luto toma conta da rotina do viúvo, a quem a mudança para Hiroshima, mesmo que temporária, vem destabilizar. 

O projecto onde participa tem desde logo características diferenciadoras: há actores de várias nacionalidades, que falam línguas distintas em palco, incluindo língua gestual coreana. A peça interpretada é a já tão familiar Tio Vânia, de Tchécov, cujos diálogos o protagonista faz questão de ouvir recitados pela sua falecida mulher, numa cassete áudio, em cada viagem de carro, repetitivamente há vários anos.


E é nas mudanças que Hiroshima traz à sua vida, que o autocontrolo de Yûsuke será posto à prova. Seja pelo reencontro com Kôshi Takatsuki (Masaki Okada), actor e antigo admirador da sua mulher, habitualmente envolvido em polémicas; ao conhecer e dirigir a actriz muda, Lee Yoon-a (Yoo-rim Park); e, principalmente, ao partilhar a sua história com a jovem motorista Misaki (Tôko Miura). Os tons, maioritariamente suaves e neutros do filme, apelam à acalmia aparente, mas revelam toda a melancolia que cada personagem carrega em si.

Nestes encontros, o protagonista é desafiado por si mesmo e por quem o rodeia. A morte paira em torno do passado das personagens centrais, bem como o luto e o (quase eterno) sentimento de culpa. É urgente a necessidade de superação e o reencontro consigo próprios. 

Hamaguchi usa as estradas, pontes e túneis do Japão para estabelecer um paradoxo no acto de conduzir: tão libertador como enclausurante. E, durante grande parte da longa-metragem, para Yûsuke, conduzir era uma forma de fugir do passado, sempre sem querer efetivamente escapar-lhe.


Entre o teatro e o cinema, mas igualmente entre o espiritual e o terreno, Drive My Car é uma obra introspectiva e de sentimentos complexos, que leva a plateia numa viagem de entrega e partilha, conduzida por Misaki mas iniciada por Yûsuke.

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