A propósito da estreia de Primeira Obra, a sua primeira longa-metragem de ficção, estivemos à conversa com o realizador Rui Simões, um dos cineastas da Revolução que, tal como ela, completa este ano 50 anos de carreira, e 80 de vida. Falámos sobre Primeira Obra, sobre o seu percurso no documentário, sobre os seus icónicos filmes Deus Pátria Autoridade (1976) e Bom Povo Português (1980), as suas repercussões nos dias de hoje, e muito mais.
Depois de tantos anos nos documentários, o que o levou a realizar agora o seu primeiro filme de ficção? Foi a sucessiva falta de financiamento público, que foi adiando esta incursão pela ficção? Já li algumas entrevistas em que falou muito dessa questão.
Rui Simões: Eu sempre quis fazer ficção, aliás, a minha formação é de ficção, não é de documentário. Eu andei numa escola de cinema clássica, uma escola com mais de 60 anos de existência. Na altura, o cinema era o cinema de ficção. Os documentários ou tudo o que tinha a ver com o real estava mais ligado ao aparecimento das televisões, aos repórteres, aos jornalistas, portanto o documentário ainda não era aquilo que hoje é. Na altura, nós nem sequer tínhamos formação nenhuma em relação ao documentário, nem sequer fazíamos documentários na escola. A minha formação era toda de ficção e os filmes que eu faço na escola, exercícios, são de ficção. Quando chego a Portugal, depois do 25 de Abril, eu quero é filmar a Revolução, não me interessa se é ficção, se é documentário: é Cinema. O que acontece é que as pessoas que decidem neste país não entenderam assim durante 40 anos. Não entenderam por quê? Porque lhes deu jeito não entender. É uma atitude política muito clara. Se eu agora fosse analisar todos os júris, ao longo de 40 anos, que disseram nas suas notas que eu era um documentarista e por isso não podia fazer ficção, seria interessante e eu ia-me rir. Espero que um dia um jovem, lusodescendente ou mesmo português, faça essa pesquisa e analise por que é que, ao longo de 40 anos, eu fui posto de lado em relação à ficção. Ao fim de ter feito os meus dois filmes documentários, o Deus Pátria [Autoridade] e o Bom Povo [Português], estive 22 anos sem fazer nem ficção nem documentário, portanto, aí foi mesmo politicamente para arrasar. Quem é que estava no poder durante esses 22 anos? Quais é que foram os júris que foram nomeados? Quais é que foram os presidentes do Instituto do Cinema? Será que os portugueses mudaram e agora são outros? A população mudou? Enfim, outros cineastas, que fizeram tanto documentário como ficção, continuaram as suas carreiras e outros não. Eu sou daqueles que não, sou dos que foi penalizado pela História. Portanto, eu não tenho, nem tinha, aversão nenhuma à ficção. Pelo contrário. Assim que acabei o Bom Povo Português, em 1980, que foi quando estreou, vou logo a concurso com o Animatógrafo, com o António da Cunha Telles, por uma longa-metragem de ficção que se chamava La Reigne Morte, que era a adaptação de [Henry de] Montherlant, da nossa história de amor entre Pedro e Inês. Era uma história que eu achava interessante ser mostrada em cinema, mas como versão francesa, ou seja, o olhar de um grande escritor clássico francês sobre uma história de amor portuguesa. Que voltas é que ele dava para escrever sobre nós uma história tão íntima e tão forte como essa que marca a nossa cultura. E chegámos a falar com Jack Lang, que era o Ministro da Cultura [francês] na altura, encontramo-lo na ilha da Madeira, num encontro de cinema que houve. Ele abriu as portas para nos ajudar em França, só me pediu que eu respeitasse o texto na íntegra e eu disse que sim, claro. Não ganhou. Voltei a apresentar, acho que mais um ano. Depois mudei de tema, apresentei um outro projecto e depois outro, e depois outro. E, às tantas, a gente percebe que não vai passar dali. Ultimamente, já também um bocado chateado com isto tudo, foi um bocadinho tipo provocação: já que me consideram um documentarista e o documentarista do 25 de Abril, da Revolução, então vou fazer uma coisa sobre mim mesmo e sobre o meu cinema de Abril. E assim foi. Escrevemos uma história, baseada na minha própria história, que é a Primeira Obra. E é essa que ganha. Portanto, ao ganhar, permite-me fazer e chegar às salas em breve e andar por aí a mostrar o filme.
E entretanto criou a sua produtora…
Rui Simões: Sim, isso já vão muitos anos. Criei a minha produtora porque eu não conseguia trabalhar em cinema. Trabalhava para outros, ou como director de produção, para o Animatógrafo trabalhei muito, trabalhei em produções internacionais em vários cargos diferentes, fui assistente de realização de vários cineastas, inclusivamente de um português que, a dado momento, pediu para eu fazer a assistência de realização, que foi António Pedro Vasconcelos, numa série internacional que ele fez, porque eu estava ligado a essa série com um outro realizador chileno e então aproveitou-se e passei de uma equipa para a outra e gostava de fazer isso tudo. Portanto, trabalhava para outras produtoras, trabalhei para o Manuel Costa e Silva, na montagem de uma grande produção americana, como assistente, tinha alguns colegas que me conseguiram encaixar e assim pude ir trabalhando, mas as coisas não eram fáceis porque o que eu queria mesmo era fazer cinema. Tive de mudar a minha vida, mudar de cidade, deixei Lisboa, porque não conseguia pagar uma casa em Lisboa. Fui para a zona de Sintra, que era uma zona muito barata na altura, para uma aldeiazinha pequenina, e demorou tudo muito tempo até voltar outra vez ao cinema. Montei esta produtora, primeiro com um desejo de produzir outros, para vir um dia a produzir-me a mim próprio. E comecei a trabalhar nesse sentido, a apresentar os meus projectos em nome dessa produtora, projectos de outros, todos jovens, que procuravam alguém que os organizasse e lhes conseguisse financiamento para fazerem os seus filmes, e a Real Ficção transformou-se na produtora que é hoje, uma produtora estável, com muito realizadores à volta, com muitas produções, tanto documentais como de ficção. Ultrapassou-se, de certa maneira, a minha situação individual. Durante muitos anos, eu continuei a não fazer filmes, mas conseguia que os outros fizessem. Por isso, também foi gratificante, porque ajudava, colaborava. Estava na minha casa a trabalhar aquilo que eu gostava e podia escolher os projectos. E a Real Ficção nasceu assim.
Primeira Obra |
A personagem interpretada por António Fonseca, o Simão, representa o lado mais autobiográfico de Primeira Obra. Como foi construir esta espécie de alter-ego? E como se deu a escolha de António Fonseca para o papel?
Rui Simões: António Fonseca foi uma boa escolha e não foi minha. Eu estava à procura e estava com dúvidas e também não queria ninguém que fosse óbvio [para o papel]. No fundo, era um pouco a ideia: há actores fantásticos e há actores muito conhecidos, mas eu não queria um actor muito óbvio. Eu também não sou muito óbvio como pessoa e, por isso, não me revejo muito nos actores que estavam mais presentes. Tinha algumas ideias, aliás, a minha primeira ideia, e eu nunca disse isto a ninguém mas posso dizer, a minha primeira ideia como actor para este papel era o João Perry, por quem eu tenho uma admiração imensa. Não sendo possível o João Perry, e em conversa com o meu amigo João Brites, ele aconselhou-me o António Fonseca. Eu não conhecia muito bem o António Fonseca e fui à procura dos trabalhos dele, fui ver as peças que ele fez. Ele tinha uma peça [em cena] na altura e eu fui assistir, ainda por cima está a trabalhar com um actor que eu gosto muito também que é o Pedro Gil, e estavam na peça os dois. Naquele encontro, convidei logo os dois, ele e o Pedro Gil, para o filme. O Pedro Gil não podia porque já estava comprometido, e tive de fazer um casting para o papel do jovem, o Michel. Com o António Fonseca, tivemos uma conversa, conheci-o, pedi-lhe para vir a minha casa, no Ribatejo, porque era lá que se iam passar as filmagens maiores e era a casa onde ele ia habitar. Eu queria que ele conhecesse a casa, que estivesse à vontade, que cozinhasse ali, que fosse apanhar laranjas, e foi o que ele fez. Veio ter comigo e habituou-se àquela ideia de estar na sua própria casa, e começou a ver os meus gestos, a falar comigo e a ver-me em família e foi assim. No trabalho com o António não foi necessário eu estar a dirigir propriamente ao detalhe. Raramente ele não me agradou nas suas propostas, se havia alguma coisa que era necessário corrigir foi muito pouco mesmo. Eu tinha avisado o António que eu gostava de trabalhar improvisando muito. E ele disse: “Ah, isso é o que eu mais gosto!”. Eu avisava sempre todos os atores com quem eu trabalhei: quero improvisar. Nós temos um guião, temos uma história para contar, temos diálogos, temos tudo escrito, mas na hora da verdade eu não quero isso. Ou seja, eu quero isso, mas sem ser visível a interpretação do actor, quero isso mais espontâneo, mais natural, por isso nem sequer são obrigados a respeitar os diálogos. Até porque isto não era nenhum clássico, não era nenhum texto de rigor. Desde que não traísse as minhas ideias, eu aceitava, até podiam por ideias próprias. E [o António Fonseca] mete ideias suas e inventa na hora, improvisa e tal. A relação com ele foi excelente porque ele é uma pessoa excelente e quando as pessoas são excelentes, as relações entre pessoas são sempre excelentes, é impossível não serem boas. Ele é uma pessoa fantástica e eu tive um enorme prazer em trabalhar com ele. E agradeço ao meu amigo João Brites porque foi ele que me sugeriu o António. O João é mais experiente neste relacionamento com os actores, mesmo que seja pelo lado do teatro. Mas eu estava e estou arredado de contacto com os actores. Ao longo da vida, não pude ter o contacto que gostaria de ter tido. Conheço muitos, é evidente, mas não tenho aquele contacto quotidiano com os actores.
A certo momento, no filme, o protagonista faz um tratamento de radioterapia. O Rui filma esse tratamento e, na minha opinião, ali surge algo com uma aura quase metafísica.
Rui Simões: Mas não é. É uma coisa real. É tão real porque me aconteceu a mim, por isso é que está ali. Como o espectador vê depois, não sei, mas o que está ali de facto é uma resposta às minhas preocupações. Quando faço este filme estou muito fragilizado. Tinha acabado de fazer justamente essas sessões que foram muitas, foram 40. 40 sessões de radio é uma coisa que só quem passa por lá é que sabe e pode explicar. É muito violento, perdemos muitas forças, energias, ficamos marcados. Mas é um processo mais psicológico, é um processo complicado de aceitar. Primeiro não aceitei, por isso também no filme há aquela reacção [do Simão], que foi a minha reacção, de facto, eu não quis deixar, queria ir-me embora. Ainda por cima, estamos presos ali, agarrados, aquilo é muito estranho como situação. Depois aquela máscara que foi preparada e feita à medida antes. Tudo aquilo é claustrofóbico, é assustador. Nós não temos também informação, talvez porque seja essa a ideia dos médicos, de não dar muita informação, não sei. O que é certo é que impressiona bastante e fragilizou-me muito. Quando faço o filme estou, de facto, muito fragilizado. Este filme foi muito difícil de fazer por causa disso. Tenho que agradecer à minha equipa que me levava quase ao colo para o plateau, todos os dias, e quando eu chegava com alguma energia rapidamente tinha que me sentar. Fui muito protegido e o filme – e a produção que o diga – não é um filme fácil porque estamos sempre a saltar de décor para décor, o filme nunca está num sítio, parece que está tudo muito calmo, mas não, o filme cada dia é num sitio quase, e isso para a produção é horrível. Não é uma coisa onde a gente se instala e fica ali uma semana a filmar. Nem pensar. Por isso, essas imagens tinham que estar no filme. Não estava decidido que era assim como aparece exatamente, depois a montagem é que acaba por construir.
Mas sinto que há ali uma simbologia e agora o Rui também já me explicou qual seria essa simbologia….
Rui Simões: Sim, no fundo também é trazer o real para a ficção, que é a minha luta de sempre. O que me marca da vida é a realidade e a ficção, por isso é que a minha produtora se chama Real Ficção. Por isso é que eu nunca fiz ficção, por causa do real, e agora que estou a fazer ficção, só posso fazer é real. Portanto, é um pouco todo este jogo à volta destas preocupações.
Em Primeira Obra, toca na memória do cinema pós-25 de Abril, na revisitação da sua carreira, mas também no activismo ambiental e no amor. Quais as principais mensagens que pretende transmitir ao público com este filme?
Rui Simões: A principal mensagem é mesmo essa do amor. Amor não no sentido do casalinho que eu mostro, mas amor no sentido de amor à humanidade, ao Homem ou à Mulher, à identidade… porque se não houver esse amor a autodestruição está aí. O amor parece ridículo, mas é mesmo assim, é a única mensagem importante que eu tenho para dar, apesar de todos os meus filmes sempre terem tido temas como a luta de classes, problemas sociais, a pobreza, a miséria, a saúde mental, a periferia, os imigrantes… Sempre fiz um cinema muito social, muito político e, não é que este deixe de o ser, tem isso tudo também, mas, de facto, a ideia é pensar que não há nada como amar o outro. É essa a conclusão. Sem deixar de pensar na exploração, na luta das mulheres, como se está na escola, das jovens a lutar pelo seu estatuto dentro do cinema, a luta pelo ambiente… Esta menina [Susy, interpretada por Ulé Baldé] que é ambientalista, como estes jovens que estão, de facto, aí a chamar a atenção que alguma coisa não está bem. Acredito mesmo que é por aí que vai passar o futuro da humanidade e acho que eles têm uma noção de amor muito forte e muito presente, mais que os adultos, ou que os velhos, que já não têm noção nenhuma de amor e que estão a autodestruir-se e a destruir o planeta.
Primeira Obra |
Depois de Ilha da Cova da Moura, o Rui regressa ao bairro através de Michel, protagonista de Primeira Obra. Como chegou à Cova da Moura, em 2010, e como foi este breve regresso, quase turístico, no filme de 2024, nas festas do Kola San Jon?
Rui Simões: Não só. Eu fiz duas longas-metragens e duas curtas na Cova da Moura: fiz Ilha da Cova da Moura, Kola San Jon – uma viagem a cabo verde com os imigrantes -, fiz Viagem a Madrid, ao plateau do Carlos Saura com aquele grupo do Kola [San Jon], e ainda fiz Retratos a Preto e Branco, que é uma curta-metragem sobre alguns personagens daquela população que são desenhados e, portanto, tem todo um processo ali… A Cova da Moura diz-me muito. Criei raízes quando fiz o meu primeiro filme e quando comecei a abordar mais a fundo aquela população. Tenho amigos lá e por isso, se vou revisitar os meus filmes antigos, o Bom Povo Português, por exemplo, se vou revisitar a Olga Roriz e o meu trabalho com ela, se vou revisitar filmes do passado, a Cova da Moura fazia todo o sentido, porque além de estar sempre presente para mim, eu tinha um personagem feminino de origem africana e as suas origens passavam por ali. A personagem nasce na Amadora, é daquela zona, e mesmo se não é ela que ele [Michel] encontra, esta menina acaba por levar o personagem lá, que encontra outra menina que não é aquela, mas acaba por aprender a dançar… É [uma forma de] lembrar que a Cova da Moura existe. E quem diz a Cova da Moura diz tantos outros bairros do género, mas com uma personalidade própria, com as suas próprias festas populares, com a sua atitude que não deixa morrer, a sua cultura… É de respeitar muito. E, hoje em dia, nós temos que perceber que, Portugal e a Europa, somos multiculturais e temos de respeitar tanto as outras culturas, como a nossa, nós também somos multiculturais. Portanto, voltar ali deu-me imenso prazer e gosto muito. Não quis ir a todos os filmes, senão também era uma espécie de arquivo cinematográfico e não valia a pena. Fui tratando dos temas que me são caros, e este da imigração e das periferias, e da periferia africana sobretudo, que eu tenho acompanhado mais, achei que devia voltar a meter num filme deste género. E foi óptimo, fui bem-recebido, como sempre.
O que ficou desta relação com o bairro e os seus habitantes?
Rui Simões: Tenho uma relação muito forte com eles e eles comigo. Eu não vou lá mais porque estes filmes, documentário sobretudo, são filmes muito fortes. Quando entramos nestes universos, aquela realidade acaba por se colar a nós e não conseguimos descolar destas realidades, seja na Cova da Moura, seja no Ruas da Amargura, em que o meu contacto com os sem-abrigo de Lisboa fez com que muitas daquelas pessoas se colassem realmente à minha pele. Fiquei amigo de um dos principais personagens, que já morreu, o Fernando Moedas. E não podemos continuar nestas situações porque senão não aguentamos. Não podemos ficar sem-abrigo, não podemos ir morar para a Cova da Moura, não podemos ir para Cabo Verde… Os filmes são filmes e a nossa vida real é outra coisa. Agora manter esse relacionamento, e afastar sem nunca deixar de estar é uma coisa que eu pratico e gosto muito.
E fica a amizade também…
Rui Simões: Fica, fica a amizade e tenho grandes amigos [na Cova da Moura]. E tenho lá uma senhora, que é a Liv, que é uma pessoa de quem sou muito próximo.
Na atualidade político-social atual, perigosa e instável, qual o papel do cinema e das artes em geral?
Rui Simões: Essa pergunta é a pergunta que o Michel faz ao Simão. É a mesma. O cinema é a reprodução da vida e do imaginário. O cinema não é nada de extraordinário: é uma lente, é uma objectiva, é uma máquina que capta e reproduz. Sempre pensei que o cinema tem a obrigação de contribuir para a denúncia dos excessos, da exploração do homem pelo homem, para denunciar o que está errado, construir algo que seja positivo. Acho que tem um conteúdo, mas também aceito que seja só formal. Gosto imenso de cinema que não me diz nada, mas também diz tudo, em termos de movimento, de luz, de experiência, de experimentalismo. Tudo isso para mim é válido. Agora o meu cinema, aquele que eu escolhi fazer, inconscientemente se calhar, mas que sempre me marcou, é, de certa maneira, uma relação sempre de reacção à vida e às coisas que acontecem. Primeira Obra começa com o meu primeiro filme, o primeiro de todos, que é um filme que faço na escola de cinema, que é aquele jovem – na altura jovem – todo nu, a apanhar livros e a distribuir pelos seus amigos e aqueles amigos depois transformam-se em personagens que acabam por o matar. Esse é o meu primeiro filme real, que se chama Désobéissance (Desobediência), o meu primeiro desejo de exprimir foi esse e continuou sempre. Se calhar, para um outro cineasta o cinema é outra coisa. Portanto, o cinema é tudo. Para mim, é isto, estou sempre focado nestas preocupações. Vejo uma injustiça, gosto de a denunciar, de contribuir para a corrigir. Há aqui um lado muito didático, que muitos críticos não gostam, muita gente não gosta, menospreza, acha que é cinema de segunda o ser didático, mas eu não vejo as coisas assim porque sei a quem me dirijo e não me tenho dado mal, porque encontro o público. Se eu fizer e chegar ao público, depois não me dou mal, dou-me bem, por isso a opinião dos outros pouco me interessa. Mas passa por esse tipo de atitude. É evidente que depois depende da intensidade que se dá a esse cinema. No meu caso, foi muito forte e fui penalizado. Podia fazer outro tipo de cinema, outro tipo de filmes, não sei, mas está-me na natureza. Também gosto imenso de dança. Dediquei anos e anos da minha vida à dança, gosto de artes plásticas, gosto imenso de escultura e de tudo. Há é uma linha em que me enquadro que é a linha da Real Ficção. Está definida, muito clara: são preocupações sociais, por um lado, esta ligação às artes e uma ligação também aos países de língua portuguesa que foi uma opção também da Real Ficção.
Apesar do domínio das redes sociais, do imediatismo e das fake news, ainda será possível chegar às pessoas e fazê-las refletir através da “arte de intervenção”?
Rui Simões: Claro que sim, é mesmo isso, só a arte mesmo é que pode avançar alguma coisa. A arte e a pesquisa científica e sociológica. Não digo que a Academia não contribua para melhorar a condição humana, claro que sim. Agora, as artes sobretudo, porque as artes não têm limites na codificação. O artista no fundo o que é que é? A sociedade paga ao artista, porque o artista vive da sociedade que lhe paga para ele ser artista. E por quê? Porque a sociedade não quer essa função, mas paga a outro para a fazer. E o outro faz e contribui então com a sua função. E essa função é justamente fazer aquilo que o comum dos mortais não quer ou não pode fazer. E acho muito bem que não faça. Tem que se defender, tem que ter cuidado, e o artista pode se expor porque é pago para se expor, justamente, para ter essa função. O ser artista é uma mais-valia a que a sociedade se permite.
Deus Pátria Autoridade e Bom Povo Português são os seus maiores cartões de visita. Qual seria o impacto destes dois filmes se fossem feitos nos dias de hoje?
Rui Simões: Não sei… eles estão a ter um impacto muito bom. Eu tenho andado por aí pelo país a projectar estes dois filmes, com estas duas novas cópias fantásticas e o que acontece é que a leitura que está a ser feita destes filmes, hoje em dia, é muito interessante.
Mais ainda nesta época…
Rui Simões: Na altura, era o entusiasmo, as salas cheias. Deus Pátria Autoridade foi um sucesso incrível. Foram meses numa sala de cinema, foram muitas cópias a circularem pelo país todo, as salas sempre esgotadas. O Bom Povo [Português] também, mas, a um dado momento, é abafado e retirado de exibição, e por isso é penalizado. A gente não sabe muito bem até onde ele podia ter ido, mas lá fora foi e permitiu-me duas grandes viagens na América, sobretudo nos Estados Unidos e também na América Latina. Nos Estados Unidos, sobretudo, Estados Unidos e Canadá, fiz mais de duas voltas completas aos Estados Unidos a mostrar esses filmes. Na Europa também, chegaram à Ásia também, a África… Esses filmes atingiram de facto os objectivos na altura. Foram compreendidos, acho que foram. Agora, é outra leitura, mas é uma leitura muito interessante. Tenho feito debates em todo o lado onde tenho ido, e tenho ido a muitos sítios. E, seja em que cidade for, Aveiro, Évora, Mértola, Santarém, seja onde for, só chego à cama às duas da manhã. Até ali estivemos a falar, a discutir na sala de cinema. Só quando nos põem fora das salas de cinema é que a gente pára de falar. Há um interesse muito grande da minha geração, dos mais velhos, mas também dos jovens. Há sessões que têm imensos jovens. Estou a tentar perceber melhor a razão de por que é que também há jovens tão interessadas. Não digo que os jovens não estejam interessados, mas não são propriamente dos filmes que tenham uma linguagem, uma construção, que os possa interessar. Está a acontecer que em certas sessões, ou vão porque os pais os levaram, é verdade, há muitos casos assim, ou vão porque ouviram falar entre eles, ou não sei explicar… Agora os debates são muito interessantes. E a forma como eles são feitos é diferente de como era antigamente, é de outra maneira, talvez mais profunda, muito articulada. Muitas pessoas manifestaram alguma pena de não terem visto o filme na altura, de como é que estiveram 40 anos sem ver este filme. Neste ultimo debate, houve um senhor que disse isso. É muito curioso, também outro que disse, “mas eu vi há 40 anos e voltei agora a ver e é muito diferente”, mas não foi capaz de explicar as diferenças. Agora é o momento de mostrar [estes dois filmes], são os 50 anos do 25 de Abril, há copias por todo o lado, na Europa, em África… Tenho de ir a Luanda em breve, ando aí com um calendário complicado. Ainda ontem ou hoje passou em Budapeste, em Praga anteontem, em Berlim também esta semana. E são esses filmes que estão a passar, não é propriamente a Primeira Obra. São o Deus Pátria [Autoridade] e o Bom Povo Português. A experiência que eu tive em Évora, e não esqueço porque é muito recente, é muito curiosa. Nós tínhamos uma projecção do Deus Pátria Autoridade, numa sessão organizada pelo cineclube de Évora, Cinema -Fora- dos Leões, e o que estava combinado com a minha filha, que me acompanha sempre nestas coisas, era que quando o filme começasse ela ia embora para o hotel sozinha e eu tinha de ficar ali por causa do debate. Apresentei o filme, venho-me sentar só para ouvir o som e ver se a qualidade está bem e a minha ideia ate era sair, e quando me sento digo: “então, vá Alice, vai-te embora”. E ela disse: “espera aí…”, e começou a ver. A primeira sequência do Deus Pátria Autoridade é na Marinha Grande [a mostrar] como se trabalha o vidro. E aquilo é tudo um processo muito bonito, de facto. E ela estava fascinada porque não sabia que era assim que se faziam as coisas de vidro. Estava fascinada a ver a construção daquele objecto e não conseguia sair dali. E, logo a seguir, vem outra coisa dos trabalhadores, e disto e daquilo… E eu disse: “mas não te vais embora?”, e ela: “agora fico aqui…” e ficou até ao fim do filme. No final, eu perguntei: “Então ficaste a ver o filme?” Ela nunca tinha visto este filme. O Bom Povo [Português] já tinha visto, mas o Deus Pátria [Autoridade] não. E ela disse: “é que eu aprendi coisas aqui que eu não sabia”. Tão simples quanto isto. E, com 15 anos, a resposta que dá é só essa. E não há nada mais a dizer.
Primeira Obra |
Celebrou 80 anos de idade a 20 de Março, e estreia a sua primeira longa de ficção no dia 25 de Abril, quando se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos. Quais as suas expectativas para o futuro do país e do seu cinema?
Rui Simões: O futuro do país, para mim, passa pela nova geração que está aí, a fim de tomar conta das rédeas do país. Acredito bastante na nova geração que está a ser preparada para enfrentar este mundo de hoje, está numa formação à altura da situação. Podemos criticar que podia ser melhor, ou isto ou aquilo, mas não há dúvida que a educação está a acompanhar as necessidades para poder lidar com todos estes problemas que são difíceis e aos olhos de quem é mais velho podem parecer coisas extraordinárias, mas não são, são iguais às outras. Esta coisa das guerras, nós sempre estivemos em guerra, aliás no filme há uma frase, à voz do Eduardo Lourenço, que diz “O que é normal é a guerra, não é a paz”. Isso é que é o normal do Homem. A paz é uma excepção, de vez em quando há paz. Mas o que é mesmo constante é a guerra. Sempre enfrentamos guerras, nós próprios, portugueses, estivemos metidos numa muito perto, mesmo que se passasse longe. Essas agora estão mais perto, mas, no fundo, até estão mais longe. É tudo muito complexo, mas eu acredito que os jovens estão à altura de gerir isto tudo e eu não sou nada pessimista, pelo contrário, não me assusta nada esta realidade. Acho que temos que ter a lucidez de ir combatendo o que está mal, denunciando e construindo o que acreditamos que são os valores que vale a pena defender. O meu cinema passa também por aí, o meu cinema é justamente igual a todos os filmes que fiz. Tenho um novo projecto uma segunda obra que se chamará Vera, de verdade, e é uma ficção científica. É um filme que vai abordar o tema da transformação tecnológica que está a acontecer, desse controlo global, desta dominação, que nunca foi tão grande. Esta capacidade que o homem tem de conseguir controlar e dominar tudo ao mesmo tempo de um ponto, quase que do céu domina tudo, de um drone. É um filme com muito recurso à inteligência artificial, esteticamente, e, em termos de respostas, é um filme que procura resistir a esta evolução que vai num certo sentido, sem deitar fora, é evidente, o desenvolvimento tecnológico. Portanto, é um filme muito preocupado com estas coisas todas que estamos a viver, mas é uma fantasia, é uma ficção científica, com personagens que são chipados logo à nascença, logo controlados, mas alguns não são, e, portanto, há aqui uma luta. É para continuar a pensar e a reflectir sobre isto tudo e é uma nova experiência. Se eu conseguir financiamento faço, se não conseguir não faço.
Esperemos que consiga, que agora fiquei muito curiosa…
Rui Simões: Se o júri ficar curioso também, financia e deixa-me continuar. Já que só fiz uma ficção, passarei a fazer duas, pelo menos já não é mau.
*Entrevista realizada nas instalações da Real Ficção no dia 19 de Abril de 2024.
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