sexta-feira, 7 de junho de 2024

Crítica: Pedágio (2023)

"O que é que uma mãe não faz pela saúde de um filho..."

Suellen

*7.5/10*

Em Pedágio, a sua segunda longa-metragem, Carolina Markowicz cria uma triste, mas satírica balada contra a opressão e, como a própria realizadora refere, sobre a "inversão de valores" das sociedades actuais.

"Suellen, a funcionária de uma portagem, percebe que pode aproveitar o seu trabalho para fazer algum dinheiro extra, de forma ilegal. Tudo para pagar ao filho a caríssima terapia de conversão de um famoso padre estrangeiro (Isac Graça) que o deve curar da sua homossexualidade."

Se, por um lado, a realizadora não pretende colocar Suellen do lado dos vilões do seu filme, há nesta personagem uma necessidade quase violenta de protecção do filho homossexual daquilo que os outros vão pensar ou lhe possam fazer. Esta obsessão vai-se adensando no decorrer da acção, cheia de preconceitos, com uma quase impossibilidade de comunicação ou compreensão do filho. Facilmente influenciável, Suellen mulher que, inicialmente reflectia valores firmes - apesar de muita ignorância -, começa a quebrá-los a partir do momento em que a amiga Telma lhe fala das caríssimas terapias de conversão do pastor estrangeiro da sua igreja.

Foi apenas no final de 2023 que o Parlamento português aprovou a lei que criminaliza as práticas de conversão sexual contra pessoas LGBT+. Pedágio surge nos cinemas nacionais numa época em que extremismos se adensam e cada vez é mais importante desmontar ideias e práticas violentas contra a liberdade de cada um. Nisto, o filme é certeiro: usa de um humor mordaz para ridicularizar os "vilões" e enaltecer o protagonista, em todas as suas dimensões.

Visualmente, Pedágio destaca-se. Há uma beleza tóxica no meio da decadência do município de Cubatão, onde a mata atlântica rodeia e é contaminada por refinarias petrolíferas e fábricas fumarentas - tendo já sido considerado um dos locais mais poluídos do mundo. Mãe e filho moram numa casa muito precária, sem quaisquer mordomias. Contudo, é lá dentro que surgem as luzes coloridas que António usa para os seus vídeos nas redes sociais, as cores vivas, a música, os brilhos ou os estampados floridos, que transforam a estética de Pedágio numa fantasia triste ou num pesadelo colorido. 

O mesmo contraste acontece nas reuniões com o pastor, na igreja ultraconservadora onde a ostentação de grandeza surge desde logo na arquitectura do edifício. Ao mesmo tempo, todo o visual da sala de "aula" tem toques da exuberância que tanto condenam. Os pássaros colorido, as cores da plasticina, os painéis azuis nas paredes, tudo entra em contraste com o que pastor diz "doutrinar".

Neste lado visual de Pedágio, é de destacar o trabalho da direcção artística de Vicente Saldanha e da direcção de fotografia de Luis Armando Arteaga, que constroem e captam cenários tão paradoxais, numa autêntica alegoria da toxicidade das relações e mentalidades enganadoras, que fazem o contrário do que apregoam.

Nas interpretações, Maeve Jinkings está excepcional na pele de uma mãe em constante contradição e transformação de sentimentos e acções, ao lado do jovem Kauan Alvarenga, que interpreta António com a confiança de um veterano. Por sua vez, o português Isac Graça é o pastor Isaac (coincidência ou não) num desempenho que aglutina um tom sério e quase sonso com uma convicção inabalável que se torna cómica. Uma personagem que merecia maior exploração e tempo de antena, pois entende-se que há muito por revelar por baixo daquela doutrinação enviesada. A bizarria do "tratamento" é dos momentos mais curiosos e satíricos, num contraditório de sentimentos entre o ridículo e o surreal.

Pedágio é a desconstrução das ideologias fraudulentas que têm tido um crescimento exponencial pelo mundo. Carolina Markowicz não tem medo do confronto e criou uma história realista sobre tolerância, violência e várias formas de amar.

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