A Competição Nacional do IndieLisboa 2020 conta com 17 curtas e cinco longas-metragens a concurso. Neste artigo, concentramo-nos nos 12 filmes curtos a que assistimos: Bustarenga, de Ana Maria Gomes; Carnage, de Francisco Valente; Errar a Noite, de Flávio Gonçalves; Meine Liebe, de Clara Jost; Mesa, de João Fazenda; Moço, de Bernardo Lopes; A Mordida, de Pedro Neves Marques; Parto sem dor, de Maria Mire; A Rainha, de Lúcia Pires; Regada, de Francisco Janes; Semanas de areia, meses de cinza, anos de pó, de Rita Macedo; e Suspensão, de Luís Soares.
Bustarenga, de Ana Maria Gomes
Carnage, de Francisco Valente
Errar a Noite, de Flávio Gonçalves
Meine Liebe, de Clara Jost
Parto sem dor, de Maria Mire
Regada, de Francisco Janes
Semanas de areia, meses de cinza, anos de pó, de Rita Macedo
Suspensão, de Luís Soares
Bustarenga, de Ana Maria Gomes
«Ana Maria Gomes regressa à aldeia de Bustarenga no interior de Portugal e começa a ouvir o “mantra” habitual: “já com essa idade e ainda solteira e sem filhos?” Um filme acerca das pressões sociais e dos lugares de uma ainda dominante masculinidade.» Partindo desta questão tão comum, a realizadora questiona as mulheres da aldeia e cria um retrato tão rico como divertido de gerações tão distintas e, apesar de tudo, com tanto em comum. De câmara em riste e vestido amarelo, a jovem distingue-se e intimida os homens que com ela se cruzam.
Bustarenga, de Ana Maria Gomes, fala sobre expectativas, regresso às origens e amor. A realizadora filma a alegria de uma aldeia em tempo de férias e de regresso dos emigrantes, como ela própria; o contraste de gerações e ideias, mas também a esperança no amor - que reside no imaginário de jovens e idosos, mulheres e homens.
Carnage, de Francisco Valente, é, provavelmente, o filme mais actual desta competição. Mostra-nos a cidade, dominada pelos arranha-céus e pela cor, em tempos de pandemia. "Nova Iorque, 2020. Uma cidade entre as profecias de John Carpenter (They Live; Escape from New York) e as de um Trump redentor. Os arranha-céus apontam para o céu, mas, ao mesmo tempo, enclausuram como muros." No centro, o fantasma de Donald Trump espreita por entre os edifícios, mais ameaçador que o vírus,
As luzes da noite lisboeta, mais intensas que as paixões fugazes, são as estrelas que iluminam o caminho incerto de Paulo - um estreia marcante do bailarino João Moreira -, em Errar a Noite, de Flávio Gonçalves. As cores psicadélicas do bar contrastam com a longa noite e as suas sombras, num bom trabalho da direcção de fotografia.
"Paulo trabalha num bar e quando acaba o seu turno, erra pela noite lisboeta. Entre o tom romântico e desolado, Flávio Gonçalves filma na poesia da noite. Uma poesia feita de encontros, de luzes ferozes, de corpos que amam e temem."
Meine Liebe, de Clara Jost
Meine Liebe, de Clara Jost, filma a breve vida de um tomateiro. "Uma rapariga compra um tomateiro. Cola-o num vaso grande demais e o tomateiro deprime-se. Acaba por dar apenas um tomatinho, mas é tempo de dizer adeus. Adeus tomatinho, até qualquer dia." Um exercício experimental, filmado com amor e inocência.
Mesa, de João Fazenda
A animação de João Fazenda, Mesa, leva-nos a um convívio. "Um grupo grande de pessoas reúne-se à volta de uma mesa para uma refeição. Não se percebe se são uma família ou amigos. A comida é servida sob um ambiente ruidoso, quase circense. Ao longo da refeição descobrimos as várias figuras do grupo, ouvimos as suas conversas e adivinhamos ligações entre elas. Fazem-se brindes e cantam-se os parabéns. A dada altura já há quem durma, quem leia, quem namore. O ambiente vai-se fragmentando cada vez mais. No final sobra apenas loiça suja e silêncio."
O filme de João Fazenda guia-nos pela longa mesa e faz as apresentações, sem ser preciso falar. Estamos perante a representação de todos os personagens possíveis numa refeição festiva. A imaginação de uma criança ajuda-nos a entrar no convívio, com tantas personalidades distintas, mas tão comuns num grupo em sociabilização.
Nos tempos que correm, é um regalo ver um filme tão divertido e espirituoso com uma reunião de comemoração, cheia de comida, conversas, abraços e emoções.
Moço, de Bernardo Lopes
Moço, de Bernardo Lopes, traz-nos um filme sobre o crescimento e a família: "Um dia João, jovem adolescente, decide não regressar a casa. Porque lá moram uma mãe infeliz e um pai ausente."
Moço lembra os filmes Rafa e Montanha, de João Salaviza, focados em crianças e famílias disfuncionais. E Bernardo Lopes é capaz de, através de um ambiente pesado, fazer pairar a inocência do final da infância. Vivida em liberdade, no campo, no rio, com amigos, sem pressas ou grande controlo familiar. Porque a entrada na adolescência e a consciência da vida adulta nunca serão fáceis de assimilar.
A Mordida, de Pedro Neves Marques
Pedro Neves Marques arrisca-se na ficção científica com A Mordida. "Num laboratório modificam-se geneticamente os mosquitos macho para transmitir um gene letal às fêmeas. Um homem, uma mulher e uma mulher transgénero vivem uma relação poliamorosa. Contra a epidemia reaccionária, a autonomia de intimidade e da reprodução."
Novas formas de vida, novas formas de reprodução, alterações genéticas são alguns dos elementos que encontramos em A Mordida. Nesta curta-metragem, uma epidemia faz alterar as formas de combate disponíveis - em guerra aberta contra a doença. Um filme cujo suspense é movido essencialmente pela banda sonora, de uma omnipresença sonante e que acompanha o visual - filmado em 16mm - e a história com destreza.
A curta-metragem de Maria Mire, Parto Sem Dor, parte de um feliz acaso na vida da realizadora que, sem saber, se cruzou há algumas décadas com uma das grande mulheres feministas portuguesas.
"Os vizinhos pregam-nos partidas, fazem-nos surpresas. Cesina Bermudes, médica obstetra reformada, bateu uma vez à porta da casa de Mire oferecendo ajuda. A realizadora agradeceu e, com a sua memória e criatividade, devolveu o gentil gesto."
A realizadora conheceu Cesina quando esta tinha cerca de 80 anos e lhe ofereceu móveis para a sua nova casa, na Avenida Santos Dumont. Não soube logo o seu nome. Anos mais tarde, num artigo de jornal, descobriu a surpreendente identidade da sua antiga vizinha atenciosa.
Parto Sem Dor é uma merecida homenagem a esta mulher que desafiou o Estado Novo e lutou pela saúde feminina. Esteve presa, mas ajudou inúmeras mulheres grávidas na clandestinidade a darem à luz. Foi pioneira no parto sem dor - excluindo a ideia, ainda hoje imiscuída na mente de tantos, de que a mulher deve sofrer no parto.
Visualmente, o filme de Maria Mire é colorido e psicadélico, mas mostra-nos igualmente documentos que a realizadora encontrou na Torre do Tombo, que contam parte da história da nossa heroína. Terminamos com a emancipação nas tradições, normalmente associadas a homens, onde agora também há mulheres a participar.
A Rainha, de Lúcia Pires
Lúcia Pires constrói um falso documentário que queríamos que fosse real, em redor de uma mulher muito à frente no seu tempo. "No Oeste de Portugal surge subitamente uma mulher misteriosa. Todos a tinham visto, mas ninguém sabia quem era. Mãe, fada, anjo, dona de uma vinha? Com recurso a depoimentos e imagens de arquivo, Lúcia Pires (Fauna, 2018) questiona a efabulação e a existência sem prova."
A Rainha é um filme encantador sobre as lendas que passam de geração em geração, sem nunca serem provadas, mas que a crença popular quase as torna reais. Neste filme, o vinho do Oeste serve de mote à história e a realizadora cria todas as evidências para a crença se propagar. A comandar toda a história está uma mulher, produtora de vinho, que fazia frente aos homens poderosos do antigamente, e que se confunde com a aparição que abençoava a vindima.
Para além da desconstrução do próprio filme e das lendas, Lúcia Pires toca temáticas como a emancipação feminina e o terror que a masculinidade revela face a quem a enfrenta.
Francisco Janes apresenta Regada, num mergulho dinâmico pela Natureza, em cada gesto e detalhe, em cada forma de vida. "Na Serra do Açor, a família de Rafael Toral trabalha sobre a terra. Em particular uma tarefa de renovação, após um devastador incêndio. Regada é uma experiência de imersão nos elementos, tudo é vivido através dos sentidos, numa paisagem sonora e visual."
Regada mostra-nos a Natureza e o trabalho na terra. Os animais, as pedras e as árvores. O verde, o cinza, a chuva e o nevoeiro. Tudo conjugado num filme que mostra a beleza dos elementos naturais e dos movimentos dos homens. A transformação, a luz, a água e a frescura que o filme é capaz de transmitir colocam-nos no terreno e assistimos, desde o interior, a todo o processo de renascer das cinzas.
Semanas de areia, meses de cinza, anos de pó, de Rita Macedo
Semanas de Areia, Meses de Cinza, Anos de Pó será o filme mais pessoal de Rita Macedo, que nos convida a entrar na sua história de vida e numa reflexão sobre a memória pessoal e colectiva. A realizadora "viveu nos anos 90 em Macau com a sua família. Através de um olhar reflexivo, a autora laça a sua memória e a História. Ambos momentos de uma mesma finitude e transformação."
Dos tempos vividos em Macau, e sobre o que mudou no território desde então, Rita Macedo questiona-se sobre o colonialismo e herança deixada nos diferentes países colonizados pelos portugueses, estabelecendo ainda ligação com a tese de doutoramento da sua mãe, a sua doença - uma demência, e toda a relação destes elementos com a memória.
Semanas de Areia, Meses de Cinza, Anos de Pó é todo ele, efectivamente, memória.
Suspensão, de Luís Soares, traz-nos uma animação, em que as flores vermelhas no quarto (ou os ecrãs de televisões lá fora) dão cor a uma imagem onde o preto e branco predominam, como traços de desenho, em vários ângulos e cheios de transparências e sobreposições. Transparências que simbolizam e mostram (qual fantasma) as possibilidades infinitas do que poderá acontecer a seguir.
"Em 2013, Soares venceu o prémio Novíssimos do IndieLisboa com a curta de animação Outro Homem Qualquer. Agora regressa para dar imagem e som a um movimento preciso de suspensão: um homem triste no seu quarto num momento de indecisão." É esta indecisão que suspende o tempo na cama, na cadeira e na rua.
"Em 2013, Soares venceu o prémio Novíssimos do IndieLisboa com a curta de animação Outro Homem Qualquer. Agora regressa para dar imagem e som a um movimento preciso de suspensão: um homem triste no seu quarto num momento de indecisão." É esta indecisão que suspende o tempo na cama, na cadeira e na rua.
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