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quarta-feira, 9 de setembro de 2020

IndieLisboa'20: A Febre (2019), Maya Da-Rin

*7/10*


Num momento em que quem detém o poder no Brasil ameaça a sobrevivência indígena, A Febre, de Maya Da-Rin, coloca os índios brasileiros como protagonistas da sua primeira longa-metragem de ficção.

Manaus é uma cidade industrial cercada pela floresta amazónica. Justino, um indígena Desana de 45 anos, trabalha como vigia no porto de cargas. Desde a morte da esposa, a sua principal companhia é a filha mais nova, Vanessa, com quem vive numa casa modesta na periferia. Enfermeira num posto de saúde, Vanessa é aceite para estudar medicina em Brasília e terá que viajar em breve. Confrontado com a opressão da cidade e a distância da sua aldeia de onde partiu há mais de 20 anos, Justino vê -se condenado a uma existência sem lugar. Com o passar dos dias, é tomado por uma febre forte. Durante a noite, uma criatura misteriosa segue seus passos. Durante o dia, luta para se manter acordado no trabalho. Mas a rotina do porto é quebrada pela chegada de um novo vigia. Enquanto isso, na televisão, fala-se de um animal selvagem à espreita no bairro.

A Febre resultou de um longo processo de conhecimento e colaboração da realizadora Maya Da-Rin e comunidades indígenas, que começou quando realizou alguns documentários na fronteira do Brasil, Colômbia e Peru. Das histórias que conheceu, surgiu este argumento, em conjunto com as experiências dos próprios actores - daí o realismo e naturalismo do filme serem das suas características mais distintivas. Sendo a maioria do elenco amadora, tudo ainda nos parece menos ficcional.


No limbo entre as origens indígenas e a adaptação à vida na cidade, Justino manifesta os seus receios através de uma febre que nenhum médico consegue compreender. A doença súbita é despoletada pela notícia da entrada da filha no curso de Medicina e consequente mudança para Brasília, para longe do pai. O desamparo é evidente, mas Justino é compreensivo e sabe o que é melhor para a filha, mesmo que não o seja para ele. E dentro do choque da notícia, parece ter medo do futuro, confrontando-se diariamente com o preconceito da sociedade contra os índios - veja-se como o novo colega de trabalho fala sobre eles ou a admiração do médico que o examina ao perceber que ambos se alimentam da mesma forma.

Nestes dias de pesadelos e febres repentinas, em que há relatos de um animal selvagem por perto, eis que a cultura indígena, muito mais ligada a superstições, encontra justificações para o que a ciência não consegue explicar. É aqui que se encontra o realismo mágico que paira em redor de A Febre.

De destacar a excelente prestação do protagonista Regis Myrupu, que conquistou o prémio para Melhor Actor no Festival de Cinema de Locarno 2019 - no mesmo ano que Vitalina Varela venceu na categoria de Melhor Actriz - e Rosa Peixoto, a filha Vanessa, vem acrescentar doçura e persistência à narrativa. A relação pai/filha é terna e de uma dependência muito realista, espelhada na cumplicidade entre os dois actores.


A Febre faz reflectir sobre o papel do índio brasileiro na sociedade, com costumes e cultura que devem ser respeitados e preservados. Maya Da-Rin traz para a ribalta um povo que tem sofrido na pele, desde há muitos séculos, os horrores da colonização e, mais recentemente, o desrespeito de uma sociedade dita moderna.

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