O Curtas Vila do Conde 2022 terminou há um mês, mas não é tarde para falar sobre algumas das curtas-metragens da Competição Nacional desta 30.ª edição do festival. Dos 14 filmes na corrida, assistimos a sete.
Eis a análise:
Aos Dezasseis (At Sixteen), Carlos Lobo
"Uma escola, um parque de skate e um concerto. Sara acaba de fazer dezasseis anos. Curta-metragem sobre a adolescência através da história de uma jovem, assolada por inúmeras incertezas sobre o seu lugar na sociedade."
Aos Dezasseis é um filme de poucas palavras. Sara transmite tudo através do olhar, seja curiosidade, receio, interesse e, principalmente, incerteza.
Carlos Lobo filma com muito ritmo as actividades, da coreografia inicial, às manobras de skate, até ao concerto final. E Sara surge e revela-se entre as necessidades de agitação e solidão, euforia e desilusão, e todas as dúvidas e ânsias que a adolescência faz despertar.
As Sacrificadas (The Left Behind), Aurélie Oliveira Pernet
"No Verão, as montanhas portuguesas são devastadas pelos incêndios. Otília debate-se entre o trabalho como empregada de limpeza na piscina municipal e a necessidade de cuidar sozinha da mãe. Sufocada pelo quotidiano, as chamas despertam a solidão, o desespero e desejo de escapar."
Aurélie Oliveira Pernet tem uma estreia auspiciosa no Curtas Vila do Conde 2022. As Sacrificadas é a sua segunda curta-metragem, onde segue a vida de uma filha que vive para o trabalho e para cuidar da mãe doente, anulando-se enquanto mulher.
O filme passa-se no Verão, durante a época de incêndios, no interior do país. A realizadora envolve a plateia na acção, seguindo a rotina de Otília - entre a Água e o Fogo, os elementos mais destacados em As Sacrificadas -, da tranquilidade do emprego nas piscinas, à difícil relação com a mãe. O fogo ronda os terrenos perto da casa da protagonista, mas é lá dentro, nas notícias que a televisão anuncia, que mais se sente o seu calor - adensado pelas discussões entre mãe e filha.
No papel principal, destaque para o desempenho de Tânia Alves que é a alma da curta-metragem, num sofrimento espelhado no rosto, mas sufocado na voz. O desespero, a desconfiança e a solidão de Otília são o combustível que poderá acender o rastilho da vontade de escapar.
Garrano, David Doutel e Vasco Sá
"Um cavalo Garrano é forçado a puxar uma carga pesada sob um sol escaldante, e Joel, um jovem rapaz, descobre um homem que está prestes a incendiar uma floresta."
Garrano marca o regresso da dupla Vasco Sá e David Doutel e do seu característico estilo de animação, para contar uma história de fuga e cativeiro, no meio de um potencial incêndio florestal. O mistério em redor da raça do seu cavalo intriga o pequeno Joel. O pai diz-lhe que eles são "selvagens como o fogo" mas o deles amansou e é agora sobrecarregado com o trabalho que o Homem não tem força para executar.
As paisagens do norte de Portugal, de onde o garrano é originário, são replicadas fielmente no ecrã, entre a neblina, os terrenos montanhosos e acidentados e a floresta abundante. O argumento assenta nos abusos de que cavalo e criança são alvo, numa espécie de alegoria entre os dois personagens, animal e humano, e no modo em que cada um encontra uma potencial fuga.
Ice Merchants, João Gonzalez
"Um homem e o seu filho saltam de pára-quedas todos os dias, da sua casa fria e vertiginosa presa no alto de um precipício, para se deslocarem à aldeia que se situa na planície abaixo, onde vendem o gelo que produzem durante a noite."
A delicadeza da história e do traço de João Gonzalez, em Ice Merchants, confere à curta-metragem uma sensibilidade pouco comum. Compreende-se que tenha conquistado o Prémio da Semana da Crítica no Festival de Cannes 2022.
A relação terna e de amor incondicional entre pai e filho, que vivem num precipício gelado, é pontuada por detalhes deliciosos - e cheios de pistas para o que aí vem. O baloiço nas alturas, o salto de pára-quedas, os objectos simbólicos dentro de casa ou o ritual da compra de chapéus, que todos os dias usam, bem como a perspectiva de perigo constante, tudo contribui para a criação de empatia e verdadeira preocupação da parte da plateia. Paira um sentimento de nostalgia sobre aquela casa que passa para o outro lado do ecrã, a par da espiritualidade que vai crescendo no decurso da acção.
Sem falas, embalado pela banda sonora e pelo som do vento ou dos objectos, Ice Merchants é comoção e amor, capaz de tocar bem fundo.
O Casaco Rosa (The Pink Jacket), Mónica Santos
"Um filme-musical político sobre um Casaco Rosa sempre com alguma na manga. No conforto do seu lar, Casaco Rosa tortura e costura os opositores do sistema."
De uma originalidade surpreendente, Mónica Santos conta a história de um conhecido agente da PIDE através da animação, cheia de cor e de música. Contrastando com o visual alegre da curta-metragem, os tecidos e objectos de costura são autênticos agentes de tortura, ao serviço do protagonista. As palavras cantadas narram a acção e as imagens, aparentemente tão delicadas, são capazes de arrepiar, por saber como aquela história é real.
O Casaco Rosa é o resultado de um excelente trabalho de toda a equipa, com extrema atenção aos pormenores, sem deixar faltar as vozes da liberdade e da esperança, ecoando pelo rádio, enquanto se espera que a revolução aconteça e que a impunidade não vingue.
Saturno (Saturn), Luís Costa e André Guiomar
"Saturno conta a história de Caveirinha, um pescador humilde que vive numa difícil situação social. Imediatamente após a morte do seu filho no mar, enfrenta a dificuldade de enterrá-lo com dignidade."
André Guiomar e Luís Costa filmam em película, e Saturno capta a dor e o luto de uma família que perdeu um filho. Os rostos fechados dizem muito mais do que as poucas palavras que trocam. As escolhas e a esperança que tentam encontrar para seguir em frente não são fáceis. Ana Moreira e Joaquim Castro demonstram o sofrimento das suas personagens num desempenho contido, onde as emoções transparecem em cada expressão, em cada silêncio.
O plano sequência final mostra como o rio pode acalmar a dor. O som das suas águas sobrepõe-se ao do motor do barco e o ambiente introspectivo que se sente naquele pequeno espaço transpõe a lente da câmara e o ecrã, estendendo-se à plateia.
2ª Pessoa (2nd Person), Rita Barbosa
"Um cano velho de uma casa-de-banho provocou uma infiltração num tecto. Nesse tecto, viriam a crescer cogumelos de uma espécie tóxica da ordem Poriales. Sentada na sanita, a senhora desta casa, olha para cima e observa aquele mágico e misterioso fungo que não é bicho, nem é planta. O cogumelo é o futuro, pensou."
Duas personagens, um homem e uma mulher, recordam momentos que os marcaram no passado. Apenas se ouvem as suas vozes, e é a da senhora que nos fica mais presente, recordando o casamento sem amor e um encontro sexual com outra mulher, que parece ter mudado a sua vida. As memórias transformam-se por vezes em fantasia, confusas, apoiadas pelas histórias que cria sobre as pessoas que gosta de observar pela janela. Ao mesmo tempo, reflecte sobre as (im)possibilidades da Natureza.
A acompanhar as vozes e histórias, vêem-se imagens de lixo, de um bairro degradado, do quotidiano de cada prédio, através dos habitantes que surgem, por vezes, às janelas e varandas. Provavelmente, os mesmos que a narradora espia através dos vidros.
Em Segunda Pessoa, destaque para o trabalho de som, que transforma os desabafos das personagens em quase sussurros, e hiperboliza o som do que se vê da janela, ao longe.
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