sexta-feira, 30 de junho de 2023

Crítica: Légua (2023)

"- Todas ferem, a última mata...
- O quê?
- As horas. São as horas a passar."
Padre e Ana


*7/10*

Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, é uma obra sobre a passagem do tempo, no corpo e no espaço. É a Natureza (também a Humana) no seu estado cinematográfico mais puro.

"Emília é uma velha governanta numa casa senhorial no Norte de Portugal. Ana ajuda-a, num ritual diário de cuidar do espaço para os donos que raramente aparecem. Quando Emília adoece, Ana abdica da sua vida familiar para a cuidar. Essa escolha leva a novos desafios que interrompem os gestos quotidianos e inventam outros — a filha que confronta a decisão de Ana, e a casa que lentamente vai sendo transformada num lugar vivido, habitado. Três gerações de mulheres procuram compreender o seu mundo em transformação, em que o ciclo da vida se renova a partir de finais inevitáveis."


A segunda longa-metragem de ficção dos realizadores inspira-se na casa de família onde Miller Guerra passava férias quando era mais jovem, em Légua, concelho de Marco de Canavezes, e na governanta da casa, que adoeceu e foi cuidada pela jovem ajudante da casa. 

Na ficção, Légua é construída em volta de três gerações de mulheres emancipadas, cada uma à sua maneira. A mais velha, Emília, é uma mulher conservadora, exigente e solitária, que sabe bem o que quer, mesmo no que respeita à dedicação desmedida à casa vazia que cuida com apreço. Ana mais jovem, vive na indecisão entre emigrar com o marido para França, ou ficar na sua terra e continuar o seu trabalho junto de Emília. O dilema desaparece quando esta adoece e Ana sente que é seu dever ficar e cuidar dela. Por sua vez, mais rebelde é Mónica, filha de Ana, que vai para a cidade em busca da sua independência e confronta a mãe com a decisão de ficar naquela casa solitária e não partir para junto do marido.


Perante dúvidas e certezas, um ano passa e é retratado através da Natureza e do seu ciclo agrícola, tão semelhante ao da vida - e da inevitável morte. 

Ana gosta do toque, de sentir tudo, seja o corpo do marido, os beijos e abraços daqueles que ama ou a música que a acompanha, mas também, e apesar das circunstâncias de cuidadora, a natureza, o sol, a água, a terra, as plantas, os animais (tão presentes neste filme), os frutos, as toalhas, os lençóis. 


A casa senhorial, onde tudo - e nada - acontece, vive adormecida no passado que guarda em si, até ao momento que é Ana que toma as rédeas. Ela dá-lhe um novo papel, uma nova vida: dá uso às divisões e aos objectos, e tenta proporcionar o melhor conforto possível a Emília, que dedicou a vida a manter o local pronto para os proprietários que teimavam em nunca chegar. Na pele de Ana, Carla Maciel é extraordinária, num papel com uma carga física muito forte. Ao seu lado, como Emília, Fátima Soares, actriz não profissional, esteve à altura do desafio de representar a sua própria decadência rumo ao desfecho inevitável.


Há uma luz que paira sobre cada passo de Ana. Em comunhão com a Natureza e com os animais, ela transmite paz e tranquilidade, apesar das circunstâncias. Ao filmarem em película, Filipa Reis e João Miller Guerra captam esta dimensão quase metafísica de plenitude e nostalgia, uma dualidade aparentemente impossível que rodeia Légua em cada plano. Eis a magia e a elegia da passagem do tempo.

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