A propósito da estreia da produção luso-brasileira Pedágio, de Carolina Markowicz, sobre a qual já escrevemos no blog, entrevistámos o actor português Isac Graça, que no filme veste a pele de um Pastor estrangeiro "especialista" em terapias de conversão sexual. Falámos sobre o filme, sobre o desafio de interpretar esta personagem e desvendámos alguns dos seus projectos futuros.
Como surgiu a oportunidade de fazer parte de Pedágio?
Isac Graça: Foi um golpe de sorte. Quando foi anunciado que A Viagem de Pedro, da Laís Bodanzky, ia estrear no Festival de São Paulo, tive uma sensação qualquer de que era essencial ir, e tenho aprendido a não ignorar essas sensações. Uma vez lá, a estreia correu particularmente bem. No dia a seguir passei umas horas no Museu de Arte Contemporânea da cidade, e estava a voltar para o hotel num táxi, cheio de dores nos pés, quando o Luís Urbano (produtor d'O Som e a Fúria) me liga a dizer que precisava de falar comigo. Enquanto eu estava no Museu, ele e a Karen Castanho (produtora brasileira da Biônica) tinham tido um almoço com a Carolina Markowicz, que não estava a encontrar o actor para o Pastor, sugeriram-me, e apesar de eu não ter a idade da ideia inicial para a personagem, a Carolina aceitou encontrar-se comigo essa noite. O Urbano disse-me para não ir com expectativas, e assim fiz. Tomei um banho, fiz uma sesta, e fui, e a conversa correu bem. Na manhã seguinte - voltava para Lisboa ao início da tarde - estava a acabar de tomar um bruto pequeno-almoço para me aguentar no voo, o Luis volta a ligar-me a dizer que a Carolina tinha ficado interessada em mim e que me queria fazer uma audição. Eu disse que sim (apesar de ainda não ter lido nada do guião), pedi só um tempo para fazer as malas. Fi-las, check out, meteram-me num táxi, e fui para o outro lado de São Paulo fazer a audição. Atiraram-me umas cenas para cima da mesa, fiz as cenas. Voltei ao hotel e fomos directos para o aeroporto. Nesse táxi, o Luís recebeu uma mensagem a dizer que eu tinha ficado com o trabalho.
Depois de teres sido o absolutista D. Miguel em A Viagem de Pedro, voltas agora a interpretar mais um vilão noutra produção luso-brasileira. Fala-me um pouco deste Pastor Isaac e de como te preparaste para o papel. Quais os principais desafios da personagem?
Isac Graça: Eu não parto do princípio que faço vilões, embora em ambos casos tenha total lucidez que o seu papel na narrativa é antagónico, e que, modo geral, são personagens longe da minha ética. Parto do princípio que interpreto seres humanos, por mais que a sua linha geral seja a do Mal (que é sempre algo muito discutível), logo, nos processos, encho-os de pequenos detalhes de vulnerabilidade, de contradições, de nuances dúbias, e, claro, esforço-me por descobrir os porquês de serem como são. No caso do Pastor Isaac, já que o objectivo era satirizar, e em última instância, construir a personagem para a destruir, tive de clarificar mesmo tudo. E tornou-se claro que era alguém que fazia o que fazia não só por alinhar com um certo senso comum intolerante com divergência sexual (possivelmente até recusando a sua própria identidade), como por uma coisa que é comum à maioria das pessoas num mundo capitalista: fazer dinheiro enquanto coisa mais importante da vida. Eu, sendo cristão, ainda que sem ligação a igrejas específicas, parto do princípio que é preciso cuidado com a ganância financeira, que o dinheiro eventualmente pode corromper o espírito, que é algo que traz consequências nefastas e certos castigos, como o que acontece no filme (sem fazer spoiler), portanto tive muita dificuldade em construir a mente de uma pessoa que não se aceita a si nem aos outros, e que vive em prol do dinheiro. Só porque para mim isso é bizarro. Mas não podia fazer um capitalista geral, porque há milhares de tipos de capitalista, então afunilei a construção nos vendedores da banha da cobra e nos populistas, pessoas que vejo como sendo uma espécie de extrema-direita menos assumida, mais cool e modernizada, que na verdade podemos encontrar em qualquer partido político, e na rua, e a fazer scroll no Youtube ou no Instagram. Confrontei-me com essa hipótese, que tive de assumir que existe em mim, algo que tornou a construção íntima e violenta, polvilhei-a de referências reais, e pronto, acaba por ser tanta coisa que estás a tratar, que nem reparas e já estás com uma câmara em cima a fazer o filme.
Como foi a experiência de filmar fora de Portugal?
Isac Graça: Aterradora, por não conhecer bem ninguém na equipa, sendo o único português no set, e estando com o Oceano Atlântico a separar-me de casa. Felizmente, a Carolina deixou-me assistir a um dia de rodagem antes de começar a sequência do Pastor, pedi-lhe isso porque precisava de entender o tom do filme, e isso ajudou-me a estruturar e não me sentir fora. No dia da minha primeira cena, fui para o set uma hora e meia antes, e fiquei por lá a lidar, a criar mise-en-scene e a pensar e repensar decisões, e quando dei conta, já tínhamos filmado a cena. Mas não fugi do medo. Abracei-o.
Isac Graça: Eu acho o filme todo muito sólido. É uma história acessível para toda a gente, aquele eterno drama de desentendimento entre pais e filhos, mas com um ponto de vista da direcção muito enviesado, o que torna o filme mais cru e cruel. E gosto da coragem de ir mudando de tom, tens o lado dramático, o satírico e um quase de thriller de acção, mas dentro destes tons, aquele de gosto mais, porque acho uma arma mais eficaz contra a intolerância, é o satírico. Os violentadores da liberdade alheia adoram ser levados a sério, e o filme não faz isso. E como deixa meia dúzia de gatos pingados do gatekeeping mais desconfortáveis, recusando-o, deixa-me a mim bem-disposto. Acho a recusa do humor um tique de classe. Há muita gente bem mais conservadora do que se diz, profundamente classista, que ainda acha que o humor satírico é um género menor, porque, na sua génese, é a grande arma da classe trabalhadora. Eu diria que não entendem a força do humor. Ou que lhe querem pôr rédeas. Só que não vai acontecer. E o problema acaba por ser deles, porque ao recusarem o humor do filme, o tiro é-lhes direccionado, e aí não há status quo que os possa salvar.
Foi apenas no final de 2023 que o Parlamento português aprovou a lei que criminaliza as práticas de conversão sexual. No Brasil, ainda não é bem assim. Qual é, para ti, a importância de filmes como Pedágio nos dias que correm, em tempos de tanta intolerância e extremismos?
Isac Graça: Todo o Cinema é político, muitas vezes não tem é coragem de se posicionar, e quando não se posiciona, alinha com o Poder. Mas aí questiono-me se é Cinema. E não sei. Ao menos o Cinema de propaganda estatal é assumido, sabemos com o que contar. E de resto, o Cinema resvala sempre para a realidade, nem precisa de ter estreado ainda para isso começar a acontecer. Atrás eu dizia que, a par com a realizadora, construí a personagem para a destruir. No dia em que filmei a última cena do Pastor, lembro-me de pensar "Okay, estou a dar o corpo às balas. É um momento de queda. Mas não vou cair sozinho." E nesse dia, no set, pensei em dezenas de pessoas que, de certa forma, são o Pastor. A seguir ao filme caí numa espiral de tristeza que me destruiu, isto na realidade. O que de alguma forma me salvou foi saber, no fundo, que iria valer a pena. E a verdade é que, ao longo do período de montagem, e de exibição do filme, desde Toronto em Setembro, têm caído todas as pessoas em que pensei naquele dia, uma por uma. É que o Cinema vem da realidade para depois voltar para ela.
Começaste no teatro e desde então tens participado em muitos projectos no cinema e na televisão. A tua carreira tem crescido muito nos últimos anos. Ainda o mês passado estiveste em Cannes com a equipa de Mau por um Momento, de Daniel Soares, que recebeu uma menção honrosa no festival. Que personagens mais te marcaram até agora e porquê?
Isac Graça: Todas têm contribuído para este meu processo ininterrupto de construção e reconstrução da minha identidade enquanto cidadão, e por isso nutro carinho por todas elas. No outro dia, um amigo perguntou-me, numa viagem de carro, quantas personagens já tinha feito. Contabilizei, com algum esforço, e vou em cerca de 50 pessoas, todas com o seu lado lunar e com as suas coisas boas também. Mas a verdade é que não quero escolher nenhuma, porque acredito, sinceramente, que ainda estou a começar. A procissão ainda vai no adro.
E sobre os teus próximos projectos, o que é que já podes revelar?
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