quarta-feira, 27 de abril de 2016

IndieLisboa'16: Cartas da Guerra (2016)

"Adoro-te, minha gata de Janeiro, meu amor, minha gazela, meu miosótis, minha estrela aldebaran, minha amante, minha Via Láctea..."
António


*9/10*

Amor em tempos de guerra é uma boa forma de resumir Cartas da Guerra, o corajoso e pioneiro filme de Ivo M. Ferreira nesta abordagem tão intima e absorvente da Guerra Colonial.

Foi assim que se celebrou o 25 de Abril no Grande Auditório da Culturgest, esgotado. Depois da estreia internacional na Competição Internacional do Festival de Berlim, Cartas da Guerra teve no IndieLisboa a sua estreia nacional. O filme adapta uma obra do escritor António Lobo Antunes, composta por cartas que este escreveu à mulher durante a sua estadia na guerra do ultramar. A acção começa em 1971, quando António vê o seu quotidiano em Lisboa ser interrompido ao ser destacado para servir como médico no Leste de Angola. Perante a extrema violência e desolação, António escreve à mulher Maria José, contando o que vê, o que sente, como que abrigando-se do pior.

Um retrato provavelmente nunca antes visto no cinema português do que foi estar na Guerra Colonial. A desconfiança, o medo do inesperado, os vícios, a saudade, a distância, a imprevisibilidade... o fim tão próximo e tão longe. A dor do tempo a passar só era aliviada quando o correio chegava, as notícias da família, do amor que ficou em Portugal, ou no momento de responder às cartas, contar o quotidiano, os tormentos, o desespero, o medo de não voltar.


Margarida Vila-Nova e Miguel Nunes são o casal protagonista e são as suas vozes que nos lêem as cartas enviadas por António a Maria José. Ela em Lisboa, ele em Angola, o tempo a passar, a barriga dela a crescer e o amor dos dois a aumentar com as saudades. Cartas ternas, românticas, fogosas, a paixão que não se pode viver fisicamente é descrita com o mesmo fulgor em cada folha de papel. Um dos momentos mais fortes e envolventes de Cartas da Guerra é-nos mostrado pela câmara de Ivo M. Ferreira, numa espécie de amor feito à distância.

A acompanhar o texto, as imagens, duras, sombrias, entre os horrores da guerra, ver camaradas a partir, minas, tiros, o inimigo iminente que não se sabe por onde espreita, e os povos locais, doentes ou com medo, mas sempre com vontade de conviver com os soldados portugueses. A preto e branco, desde a viagem por mar para Angola, até ao quotidiano em Chiúme, Cartas da Guerra coloca-nos no centro da acção, através de planos hipnóticos, que agarram à acção, deixando-nos extasiados pelas paisagens longínquas e deslumbrantes - que transmitem o calor, o exotismo, a selva -, como igualmente abalados, atordoados, na expectativa de que aconteça o pior a qualquer momento, perdidos, por vezes, numa tranquilidade suspeita e inquietante.

Miguel Nunes merece destaque ao encarnar António, este médico sensível, que é obrigado a deixar a mulher grávida noutro continente para servir na guerra. A experiência transformadora - de onde a tristeza nunca vai desaparecer - e a impotência perante as atrocidades que o rodeiam é transmitida pelo actor de forma comedida, mas com uma naturalidade que nos diz muito. Miguel espelha as emoções no olhar, nos seus gestos subtis e contidos.


No meio destas cartas de amor escritas durante a guerra, sente-se a falta de mais visceralidade nas imagens, e, talvez, de menos narração, que, por vezes, tira o foco da acção (ou vice-versa). Compreende-se, contudo, que num filme romântico as cartas de amor sejam uma forma de aliviar a dor da separação e os horrores do conflito: mais poesia, menos sangue.

Ivo M. Ferreira realizou um filme que fazia muita falta a Portugal e ao mundo. Música, imagens e palavras revelam a Guerra Colonial do lado de quem lá esteve. Com harmonia e encanto, o cinema conta uma história de amor, que é também a dura História de uma nação.

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