25-abril-billboard

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Crítica: O Fim do Mundo (2019)

"Temos que sonhar à noite para fazer de dia"
Giovanni


*7.5/10*

O Fim do Mundo leva-nos a um mundo de desencanto, naquele que outrora foi um bairro animado e cheio de vida. Basil da Cunha regressa à Reboleira e ao Bairro da Estrada Militar, onde já vem contando histórias há alguns anos.

A obra do realizador luso-suíço tem um caracter etnográfico de enorme valor (Nuvem,  Os Vivos Também ChoramAté Ver a Luz, Nuvem Negra e agora O Fim do Mundo), ao filmar locais que em breve desaparecerão, e as pessoas que os habitam. O Fim do Mundo era para ser o filme-despedida deste bairro da Amadora, mas a pandemia veio mudar os planos - e ainda bem. As demolições pararam alguns meses, e o realizador ganhou tempo de avanço para novos projectos, antes do fim anunciado.


"Após oito anos numa casa de correcção, Spira (Michael Spencer) regressa à Reboleira, um bairro de lata que está a ser destruído, nos arredores de Lisboa. Spira é bem recebido pelos amigos e familiares, mas Kikas (Carlos Fonseca), um velho traficante do bairro, fá-lo perceber que não é bem-vindo. Depois de Até ver a Luz (2013), Basil da Cunha quis contar em O Fim do Mundo as últimas horas do bairro da Reboleira através dos olhos da geração que ele viu crescer e tomar conta das ruas nos últimos anos."

Há frieza e desalento espelhados nos olhos do protagonista, um estranho no local onde cresceu, em  que o tempo ausente fez desaparecer casas, laços e memórias. Spira é de poucas palavras, fiel aos que o respeitam, introvertido, mas carregado de mágoa e violência. Este rapaz regressa a casa e quase não a reconhece. A sociedade, por seu lado, não o reintegrou nem lhe deu esperança nestes oito anos de reformatório. Spira não vê futuro e prefere não ter sonhos. É um jovem magoado e desconfiado, mas capaz de grandes loucuras por quem ama.


Destaque para o bom desempenho do protagonista, Michael Spencer, e dos seus dois amigos, Marco Joel Fernandes (Giovanni) e Alexandre da Costa Fonseca (Chandi) cada um com uma personalidade muito própria, formando um trio de jovens sem perspectivas e obrigados pelo mundo a crescer demasiado rápido. Na pele da madrasta de Spira, Luísa Martins dos Santos é a grande descoberta do realizador neste filme. A actriz demonstra confiança e emoções seguras na sua estreia cinematográfica.

Basil da Cunha faz de O Fim do Mundo um ciclo de vida e morte, um ritual de despedida, qual cortejo fúnebre, onde filma rostos, de olhos tristes que fixam a câmara - ou nos fixam a nós - e connosco ficam para a eternidade, muito para além do dia em que as retroescavadoras apagarem as memórias físicas de uma vida construída no bairro.


Manuel é a personagem que traz os momentos mais inusitados à longa-metragem e ao bairro. Um desafiador, que rouba sanitas ou torradeiras após a demolição das casas, ou coloca música alegre em momentos soturnos. Este elemento desestabilizador proporciona-nos a cena com maior magia latente, que nos anestesia, por momentos, da dor e decadência com que O Fim do Mundo nos confronta.

Uma fuga momentânea para uma realidade paralela - que existe, mesmo que ninguém acredite - e revela o maior encanto escondido daquele local, agora meio em ruínas, que guarda as memórias felizes de muitas gerações.

Sem comentários: