A mais recente longa-metragem de
Refn apresenta-nos
Julian (
Ryan Gosling), que está à frente de um clube de boxe tailandês, fachada para um negócio de tráfico de droga. Mas quando o seu irmão é assassinado e a sua mãe,
Crystal (
Kristin Scott Thomas), chega a Banguecoque para reclamar vingança, tudo muda. No seu caminho está
Chang (
Vithaya Pansringarm), um misterioso policia, idolatrado pelos seus pares.
A Banguecoque nocturna serve de cenário - muito exótico - para a acção de
Só Deus Perdoa. O argumento, longe de exaustivo e com alguns vazios por preencher, oferece muito mais do que parece à primeira vista. Sangue e violência abundam ao longo dos 90 minutos da longa-metragem. Poucas falas, muita acção, recheada de cores eléctricas - vermelhos, amarelos e azuis "iluminam" a maior parte do filme -, e temáticas profundas. Requere-se, sobretudo, sensibilidade - física e psicológica - para chegar ao âmago de
Só Deus Perdoa.
Se por um lado temos essa "ultra-violência" de que tanto se fala, por outro lado temos a possível justificação para que ela aconteça. Uma das lições a tirar do novo trabalho de
Refn é a de que todos os actos têm consequências - para o melhor e para o pior -, e sabemo-lo desde logo através do título.
Ao mesmo tempo, a importância da família surge como outro tema-chave em
Só Deus Perdoa. O caso mais flagrante é o da família protagonista -
Julian,
Billy e a mãe
Crystal. Parece existir uma espécie de complexo de Édipo, uma relação complicada e um tanto sinistra entre esta mãe e filhos.
Julian é um filho submisso, com claros problemas que daí advêm. Perto do final podemos testemunhar a única aproximação real a uma mãe que ele venera, mas desconhece, que lhe parece inatingível. Ao mesmo tempo, outras famílias surgem ao longo do filme, e, em todas elas, uma forte mensagem nos é transmitida.
A quase ausência de falas de
Ryan Gosling durante o filme (22 linhas, ao todo) é provavelmente a maior semelhança que se poderá apontar relativamente a
Drive, onde o protagonista também pouco falava. Aliás, sabe-se que os diálogos são secundários para
Refn - lembremo-nos de
One-Eye que não diz uma única palavra em
Valhalla Rising (2009). E é nesse filme que pode recair a maior parte das comparações com
Só Deus Perdoa. O ritmo lento é comum a ambos, bem como os vermelhos-fortes, muitas vezes em tom premonitório - premonições essas que também surgem constantemente de forma subtil ao longo de
Só Deus Perdoa.
Todavia, é esteticamente que
Só Deus Perdoa atinge a excelência. A realização alia-se à fotografia (sob a direcção de
Larry Smith) e, juntas, oferecem-nos os mais belos quadros pintados num ecrã de cinema. Em cada cena presenciamos planos de excelência, geometricamente estudados e iluminados de forma brilhante. A câmara olha através das divisões de uma casa, espreita por entre as portas, oferecendo uma experiência única. Em união perfeita com a componente visual e acção está a banda sonora, de
Cliff Martinez, que nos faz temer aquelas personagens e consegue, por vezes, contrastar de forma arrepiante com aquilo a que assistimos.
O elenco tem um desempenho irrepreensível.
Ryan Gosling não descura a personagem e, mesmo pouco dizendo, consegue transmitir-nos o essencial através da sua (in)expressão. O protagonista revela uma arrepiante submissão perante a mãe, uma sexualidade complicada, e um sentido de justiça que lhe está no sangue. Apesar da coragem que demonstra, parece esconder em si muitos medos - encontramo-los nos corredores e quartos escuros, que abundam em
Só Deus Perdoa. Deslumbrante está
Kristin Scott Thomas, com uma interpretação magistral da maliciosa mãe,
Crystal. A actriz prova-nos aqui, uma vez mais, o seu talento e
glamour, até na pele da mais fria e asquerosa mulher. Quando surge,
Crystal é acompanhada por muitos tons de amarelo, que se podem relacionar com todo o luxo que a rodeia - as cenas no hotel são um óptimo exemplo. Por seu lado, o grande destaque vai para o actor tailandês
Vithaya Pansringarm na pele do polícia
Chang. Com uma interpretação desconcertante, ele faz-nos temer. O seu sentido de justiça pode fazer-nos compará-lo ao "Deus" do título do filme, ou ao "Diabo" que vamos conhecendo. É muito interessante observar como, depois do dever cumprido, o polícia termina a noite com os colegas de trabalho num
karaoke.
Refn traz-nos um filme difícil de digerir, que apela, acima de tudo, a uma forte reflexão sobre o conceito de justiça (divina?). Uma obra de uma beleza visual estonteante, repleta de uma violência estética que poucos nos proporcionam:
Só Deus Perdoa, mas o público também.