quinta-feira, 12 de março de 2020

Crítica: Retrato da Rapariga em Chamas / Portrait de la jeune fille en feu (2019)

"In solitude, I felt the liberty you spoke of. But I also felt your absence."
Héloïse



*8/10*

Retrato da Rapariga em Chamas é um quadro vivo de elogio às mulheres, com as personagens femininas a dominar a tela. Céline Sciamma filma a beleza, emancipação e igualdade.

Em 1770, Marianne (Noémie Merlant) é pintora e tem de pintar o retrato de casamento de Héloïse (Adèle Haenel), uma jovem que acaba de sair do convento. Héloïse resiste ao seu destino de esposa, recusando posar. Marianne tem de a pintar em segredo. Apresentada como dama de companhia, observa-a todos os dias.

A descoberta das primeiras paixões, do sexo, do amor e do corpo, o lugar da mulher na História, as dificuldades e os sacrifícios por que passava, tudo faz parte de Retrato da Rapariga em Chamas. Sciamma é audaciosa e usa a câmara da mesma forma que a pintora usa o pincel - ambas fazem uma bonita obra de arte.


A igualdade de género e de classes é outra temática que se encontra em Retrato da Rapariga em ChamasHéloïseMarianne e a empregada Sophie são amigas, tratam-se de igual para igual, trocando até de lugar na ausência da dona da casa - interpretada pela sempre elegante Valeria Golino. E eis mais uma singularidade do filme de Céline Sciamma: as mulheres dominam - os poucos homens que vemos são meros figurantes.

Cria-se um filme de sentimentos e sensações, visual e intimo, muito mais impactante do que possa parecer à primeira vista. Retrato da Rapariga em Chamas fica connosco, as suas ideias e imagens continuarão a fustigar a mente, em compasso com a banda sonora insistente, desconcertante, que acompanha a visualização.

O tema que as mulheres cantam junto à fogueira no festival a que vão as três jovens, dita-lhes o destino - "non possunt fugere" - e elas realmente não podem escapar ao seu fado enquanto mulheres, mesmo que tenham experimentado a felicidade da liberdade durante alguns dias.


Entre a fantasmagoria e o desejo, a câmara de Sciamma deambula pelas divisões daquela casa solitária e pelos vastos campos, compondo os mais bonitos quadros ou os mais ardentes sonhos. A perfeição que Marianne quer alcançar no retrato que pinta é a mesma que a realizadora procura colocar em casa cena, em cada plano. 

Nas interpretações, Adèle Haenel sobressai como Héloïse, entre o ar inocente e angelical e o  coração magoado e enraivecido com o destino que a espera. O desejo de liberdade e a vontade de compreender o mundo que a rodeia dão-lhe brilho. Ao seu lado, Noémie Merlant mostra-se confiante, na pele de Marianne, uma mulher independente e madura, que vive do seu trabalho, numa época em que o casamento parecia imprescindível para alcançar um futuro. A sua química com Haenel é um dos pontos fortes da longa-metragem. Merece destaque ainda a muito jovem Luàna Bajrami, a empregada da casa Sophie, confidente e companheira das outras duas, que passa por uma violenta provação.


Retrato da Rapariga em Chamas é feminino e feminista, clama igualdade e liberdade. É mais uma obra que mostra que nunca se deve parar de lutar pelos direitos das mulheres.

Sem comentários: