quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Crítica: O Poder do Cão / The Power of the Dog (2021)

"I just want to say... how nice it is not to be alone."
George Burbank


*8.5/10*

Jane Campion regressa às longas-metragens, mais de 10 anos depois, com O Poder do Cão (The Power of the Dog), uma obra que, na aparente simplicidade de um western, cria um turbilhão de tensões e desejos reprimidos.

Desde Bright Star - Estrela Cintilante (2009), que a cineasta estava afastada do grande ecrã - escreveu e realizou a série televisiva Margens Do Paraíso, entretanto - e o regresso não poderia ser mais celebrado. 

O Poder do Cão adapta o romance homónimo de Thomas Savage. O carismático rancheiro Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) inspira medo e admiração naqueles que o rodeiam. Quando o irmão George (Jesse Plemons) traz a nova esposa, Rose (Kirsten Dunst), e Peter (Kodi Smit-McPhee), o filho desta, para viver na casa da família, Phil fará tudo para atormentá-los, até se aperceber de que também ele pode estar exposto à possibilidade do amor.


O Poder do Cão está repleto de personagens perturbadas, de passado misterioso e sentimentos reprimidos. O isolamento a que estão sujeitos, ao viver num rancho solitário junto às montanhas, nos anos 20 do século XX, só adensa os maus modos de Phil e o desespero e solidão de Rose - que encontra no álcool, a par do filho, um dos melhores aliados.

Para além das vacas e de homens a cavalo (ou dos índios que aqui surgem em paz, longe de ser uma ameaça), há pouco de western no filme de Jane Campion. Em jogo estão relações interpessoais, que vão do amor à humilhação, da provocação à cumplicidade. Em redor da narrativa, está ainda aquilo que a sociedade espera de cada um, segundo as convenções da época; já quem vive fora da norma, o outsider naquele local, pode ser facilmente a vítima - ou o predador.

Sempre exímio no que faz, Benedict Cumberbatch é Phil, um homem cruel e intransigente como forma de esconder os sentimentos recalcados que guarda. Vê Rose como uma ameaça - uma mulher entre homens -, que tanto o receia como o desafia. E a chegada de Peter cria um desafio ainda maior, o jovem que ele quer domar à sua medida, a quem rebaixa, mas com quem também se identifica.


Kirsten Dunst sofre e desespera como Rose, a jovem viúva que vê em George a esperança de uma vida feliz, arruinada por Phil. Protectora do filho, que sabe não se enquadrar com as expectativas da sociedade, compreende-o e apoia-o. Já Peter, surge inicialmente como um rapaz frágil e constantemente humilhado, mas revela, aos poucos, uma insensibilidade chocante e muito mais forte do que aparenta. Uma prestação perturbadora de Kodi Smit-McPhee, cuja compleição física e o olhar inquiridor muito contribuem para o lado dúbio da personagem.

Os grandes planos das planícies desertas e as montanhas áridas são potenciados pelo trabalho de Ari Wegner na direcção de fotografia. Ao mesmo tempo, capta exemplarmente a intimidade do toque sensual em objectos, como se fossem humanos; o descarregar do ódio de Phil nos animais ou humanos mais fracos, ou a delicadeza das mãos de Peter, capaz de trabalhar os detalhes mais inesperados. Esta fusão entre violência e subtileza das imagens e da narrativa é acompanhados pela poderosa banda sonora de Jonny Greenwood.


O Poder do Cão está repleto de subtexto, desconstruções subliminares e uma sexualidade latente, com muito para absorver para além da visualização do filme. Excelente regresso de Jane Campion.

1 comentário:

César Paulo Salema disse...

Cru.
Exangue.
Ensanguentado e poeirento como a vida.
Aquela de que se foge mas que nunca foge de nós.
Misturando géneros e estereotipos como o do velho cowboy «macho» ou o da saga de Abel e Caim.
Phil olha para as montanhas como se visse silhuetas de cães raivosos.
Mais ninguém os vê.
Talvez só Bronco Henry.
Que ficou para trás da sua memória e do seu corpo de varão.
Rose desafia a tempestade e casa-se com o infortúnio ao lado de um homem dócil.
E um menino rapaz a caminho da adultícia confessa o indecifrável na primeira fase que abre o filme:
«Quando meu pai faleceu, eu só queria a felicidade da minha mãe. Que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe?»
Afinal, o ataque dos cães é inevitável.
Como se a ternura que o cowboy sádico sentia pelo seu amor de ontem fosse o rastilho para a fúria dos inocentes.
(...)
Cru.
Como se fosse veludo ao nosso olhar.
A mesma realizadora de O PIANO, Jane Campion constrói uma obra gigante - cheia de lezírias e trigo loiro - que vai levar o 1º Oscar para as mãos enormes e acres de Benedict Cumberbatch (entre ele e Andrew Garfiled, mon coeur balance!).
Como se fosse em Montana.
Mas afinal é na Nova Zelândia, o país mais ao contrário do nosso. Tanto, mas tanto a lembrar um Paul Thomas Anderson, o mais dos magnólicos poetas da imagem.
Mora este filme na Netflix.
E iluminou hoje a minha noite.
Cheia de sombras e de poeira.
De suor pagão e presságios bíblicos.
Não choveram sapos.
Mas ladraram cães.
Aqueles que só Phil vê.