quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Crítica: Alma Viva (2022)

"São Jorge, Santo Guerreiro, defende-me e protege-me para que fujam os demónios da minha volta, da minha casa e do meu caminho..."

Avó e Salomé

*8/10*

Místico, mágico e feminino, Alma Viva, a primeira longa-metragem de Cristèle Alves Meira, é o culminar do que a realizadora já tinha explorado nas curtas-metragens que a antecederam: um estilo irreverente, que assenta em tradições pagãs e uma imaginação muito fértil.

Inspirada pela sua própria infância, Cristèle filmou na aldeia da sua avó, com muitos actores não profissionais - os populares que ali vivem -, baseando-se nas superstições e histórias que foi ouvindo e lendo, e jogando com o potencial que a familiaridade ao local lhe traz.

"Como todos os anos no Verão, a pequena Salomé regressa à aldeia natal da sua família, nas montanhas de Trás-os-Montes, para passar as férias. É um tempo de festa e de descontração, mas, de repente, a sua adorada avó morre. Enquanto os adultos discutem por causa do funeral, Salomé é assombrada pelo espírito daquela que na aldeia era vista como uma bruxa."


A solitária aldeia do interior, perdida entre montanhas, onde as tradições ainda imperam, é o cenário ideal para criar a atmosfera de realismo mágico de Alma Viva. Curiosamente, o mesmo tipo de cenário que também Restos do Vento, de Tiago Guedes, levou às salas de cinema este ano. Mais uma terra sem lei, onde a justiça é, muitas vezes, feita com as próprias mãos - um mundo à parte, quase parado no tempo.

A pacata aldeia, como tantas outras no interior do país, é agitada, todos os Verões, pela chegada dos emigrantes. Alma Viva ironiza as picardias, exibicionismos e invejas que opõem os que partiram em busca de uma vida melhor, aos que ficaram, resignando-se ao seu destino - a personagem de Ana Padrão será o exemplo flagrante de quem ficou para trás para cuidar da mãe e do irmão invisual, enquanto os irmãos seguiram a sua vida fora do país. Mas, dentro ou fora de Portugal, todas as personagens revelam sonhos frustrados, e é nas acesas discussões que as fraquezas vêm ao de cima. Entre trocas de acusações e insultos, há acontecimentos macabros ou inexplicáveis que vão adensando os temores dos populares supersticiosos e conservadores, agora perturbados pelos visitantes enlutados.


A escolha de uma criança como protagonista numa história de bruxas não é ingénua e o resultado está à vista. Salomé absorve todos os gestos e palavras da avó, cada ritual, que prossegue mesmo após a sua morte (com que se confronta, talvez pela primeira vez), deixando-se levar pela espiritualidade e assustando os aldeões, ao passear-se durante a noite pelas ruas e pelos campos, qual sonâmbula. A protagonista, Lua Michel, filha da realizadora, transmite pureza e inocência, mas também a curiosidade típica da idade. A jovem actriz é destemida e incorpora Salomé com um carisma e sensibilidade notáveis, capaz de expressar qualquer emoção através do olhar.

Alma Viva é, acima de tudo, um filme de e sobre mulheres: as bruxas dos tempos modernos, ou as mulheres independentes que o conservadorismo quer impedir que se emancipem. É assim desde os primórdios e esta aldeia parece unir passado e presente, numa caça às bruxas onde o machismo e o patriarcado são os maiores condicionantes. Uma relação extraconjugal, uma mãe solteira e uma mulher lésbica: eis três transgressoras do preestabelecido, julgadas injustamente. Salomé é, porém, a única que segue a sua vontade, contra todos os que a tentam domar.


Ao lado da pequena Lua, Ester Catalão revela uma descontracção à frente da câmara que torna todas as suas cenas verdadeiramente genuínas. Uma avó envolta em misticismo e feitiçaria, em quem a força e a fraqueza coabitam naturalmente. Ana Padrão é Fátima, a filha que sacrificou o futuro para cuidar da mãe, uma personagem tão explosiva como introspectiva, cujo segredo não é escondido da câmara, mas nunca é mencionado por palavras ao longo da longa-metragem.

Observadora nata, Cristèle Alves Meira revela grande talento para filmar o sobrenatural, com um toque de humor e intimidade, potenciada pelas memórias que guarda da infância. Aliada à experiência mágica que proporciona, Alma Viva é feminismo e é, com certeza, Mulher.

2 comentários:

Manuel Martins Lopes disse...

Excelente representação da génese de Alma Viva.

Inês Moreira Santos disse...

Obrigada, Manuel. :)
Cumprimentos cinéfilos.