quinta-feira, 11 de maio de 2023

Crítica: Mal Viver (2023) + Viver Mal (2023)

João Canijo regressa aos cinemas com um díptico sobre maternidade: Mal Viver e Viver Mal são dois filmes que partilham o espaço (um hotel), o tempo e o tema central, mas de pontos de vista distintos. Mal Viver valeu a Canijo o Urso de Prata para Melhor Realização no Festival de Berlim. Em Portugal, os filmes tiveram antestreia, como uma obra em duas partes, no Festival IndieLisboa (onde também arrecadaram prémios). 


No centro da filmografia de João Canijo, são sempre as mulheres que se destacam e eis, mais uma vez, um elenco quase exclusivamente feminino - excepção para Rafael Morais e Nuno Lopes -, do qual o realizador consegue extrair o que de mais profundo cada actriz tem para dar à personagem.

Segundo o cineasta, "os dois filmes são sobre a ansiedade de ser mãe" (Mal Viver é onde tal se sente mais), sobre a incapacidade de amar incondicionalmente e como isso tem consequências naquilo em que as filhas se poderão tornar no futuro. São duas longas-metragens diferentes, até mesmo no tom, mas que se complementam.

Há mulheres que não nasceram para ser mães: ou porque não tiveram o melhor exemplo, ou porque nunca encontraram o instinto maternal, ou porque são egoístas o suficiente para se amarem incansavelmente sem sobrar um pouco de amor para os filhos. Mal Viver e Viver Mal são o retrato destas mães e das suas filhas sem amor, e daqueles que as rodeiam e são, de uma forma ou de outra, contagiados pelo desamor e pela angústia.


Mal Viver
*9/10*

"Num hotel familiar junto à costa norte de Portugal, vivem várias mulheres da mesma família de gerações diferentes. Numa relação envenenada pela amargura tentam sobreviver no hotel em decadência. A chegada inesperada de uma neta a este espaço claustrofóbico provoca perturbação e o avivar de ódios latentes e rancores acumulados."

No centro da narrativa de Mal Viver, estão duas mães - Sara e Piedade - e duas filhas - Piedade e Salomé -que herdaram das progenitoras a incapacidade para amar. Após a morte do pai, Salomé chega para viver com a mãe e avó no hotel que ambas gerem, e onde vivem com a prima Raquel e a cozinheira Ângela.


A câmara de João Canijo segue as actrizes pelos vários pisos, piscina e jardim, onde se cruzam com os poucos hóspedes, vêem televisão, nadam, conversam, discutem e fazem a gestão diária do funcionamento do alojamento. O hotel decadente, que lhes serve de sustento e de lar, surge como uma espécie de prisão para as cinco mulheres. Não há fuga possível, as suas vidas estão ali. A recém-chegada Salomé, apesar de não totalmente integrada, já sente o local como a sua casa - também ela não tem mais para onde fugir.


E é esta chegada que faz emergir todas as mágoas da família. Piedade é a maior vítima de uma mãe que não a soube amar: dilacerada pela solidão, pela falta de consolo e compreensão, por não conseguir lidar com a filha. Uma mulher incapaz de demonstrar afectos com naturalidade - a menos que seja para a sua inseparável cadela Alma -, que se culpa por não saber amar a filha, vivendo numa depressão silenciosa.

Mal Viver carrega todo o realismo trágico dos filmes de João Canijo, superando-se pela forma de filmar, e pela dualidade inevitável com Viver Mal - ambos com uma direcção de fotografia fabulosa de Leonor Teles, tirando o melhor partido da luz, dos reflexos e sombras, estimulando a curiosidade para o que cada quarto esconde, entre portas fechadas ou entreabertas.


Anabela Moreira supera-se como Piedade, revelando dor, angústia e desespero num olhar que aparenta, simultaneamente, uma tranquilidade aterradora. A Sara de Rita Blanco emana um egocentrismo e uma confiança de quem é rainha e senhora do seu hotel e das vidas das que a rodeiam. Cleia Almeida e Vera Barreto, habituais colaboradoras do realizador, são aqui mais observadoras (a Raquel de Cleia é também mais provocadora) mas fundamentais para o realismo da narrativa, e acolhem da melhor forma a jovem Madalena Almeida, que se revela à altura do desafio na pele de Salomé, desamparada, mas obstinada por chegar ao coração da sua mãe e ver respondidas todas as questões que a assombram.


Viver Mal
*7.5/10*

"Um hotel junto à costa norte de Portugal, acolhe os seus clientes, num fim-de-semana. Um homem vive dividido entre a atenção a dar à sua mulher e o espaço que ocupa a sua mãe no meio deles. Uma mãe promove o casamento da filha para facilitar a sua relação amorosa com o genro. Outra mãe vive através da filha, impedindo-a de tomar as suas próprias decisões. Três núcleos familiares em final de ciclo de aceitação."

Viver Mal é o outro lado de Mal Viver, desta vez, sob a perspectiva dos hóspedes - de meros figurantes passam agora a protagonistas -, três famílias instáveis, de relações pouco saudáveis. Aqui, cada grupo é apresentado muito para lá dos breves fragmentos de discussões que se ouviam, ao longe, em Mal Viver. Por outro lado, as desavenças das donas do hotel surgem agora apenas como pano de fundo, que os hóspedes ignoram.


Vagamente inspirado pelo dramaturgo August Strindberg (em especial nas peças Brincar com o Fogo, O Pelicano e Amor de Mãe), João Canijo divide em três capítulos as histórias paralelas de cada cliente e, mais uma vez, há uma mãe dominante em cada acto, a complicar as relações amorosas e a vida dos filhos.

Viver Mal dá a conhecer cada uma das três histórias de forma individual - embora partilhando o mesmo espaço -, e constrói-se com um sentido de humor mais apurado, mas com a mesma frieza de sentimentos e relações à beira da ruptura. O egoísmo das mães contrasta com a passividade dos filhos que poucos limites impõem à interferência da matriarca nas suas vidas, muitas vezes decidindo (ou arruinando) o seu futuro.


Em Viver Mal, juntam-se às actrizes de Mal Viver, Beatriz Batarda e Leonor Silveira, no papel de duas mães egocêntricas e controladoras; e as jovens e prometedoras actrizes Filipa Areosa e Carolina Amaral, que vestem a pele de mulheres decididas que desafiam sogras e companheiros, bem como Lia CarvalhoLeonor Vasconcelos, que interpretam filhas com ambições anuladas pelas mães e que vivem, principalmente, ao sabor das suas vontades. Nuno Lopes e Rafael Morais, os nomes masculinos do elenco, são Jaime e Alex, homens manipuladores e de pouca confiança.


Eis o díptico Mal Viver / Viver Mal, um exercício de estilo de realismo feroz e opressivo, onde João Canijo se supera e reinventa ao lado da sua equipa.

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