domingo, 10 de março de 2024

Crítica: Pobres Criaturas / Poor Things (2023)

"I have adventured it and found nothing but sugar and violence."
Bella Baxter


*8.5/10*


O arrojo de Yorgos Lanthimos não é para todos os gostos. Os seus filmes podem provocar um contraditório misto de sensações e sentimentos: admiração, repulsa, descrença ou fascínio. Pobres Criaturas segue a mesma linha do choque e sordidez, habituais no realizador, enquanto consegue ser um admirável conto sobre a emancipação feminina (mesmo que tudo possa ter começado pela ambição desmedida de um homem).

Pobres Criaturas acompanha "a fantástica evolução de Bella Baxter (Emma Stone), uma mulher ressuscitada pelo brilhante e heterodoxo médico Godwin Baxter (Willem Dafoe). Sob a protecção de Baxter, Bella quer aprender. Sedenta por conhecer o mundo, foge com Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado elegante e debochado, numa aventura vertiginosa. Livre dos preconceitos do seu tempo, Bella cresce firme no propósito de defender a igualdade e a libertação".


Eis uma protagonista apaixonante que cresce (não só literal, como intelectualmente) ao longo das quase duas horas e meia de filme. Bebé, criança, adolescente e adulta. A maturidade conquista-se fora de casa mas, ainda enclausurada, Bella já mostra a sua genica e rebeldia.

Mas Bella solta as amarras, procura a independência fora de portas - com paragens em Lisboa, Alexandria e Paris -, e entre diversas relações abusivas, ela faz escolhas, independentemente da vontade dos outros. Depois de descobrir a sexualidade, Bella luta e vai conquistando a sua liberdade e identidade individual. Cruza-se com personagens que lhe enriquecem o pensamento - e que delícia são os (poucos) momentos que passa com Martha (Hanna Schygulla) e Harry (Jerrod Carmichael), que conhece durante a viagem de navio - e é visível como a ingenuidade inicial se vai dissipando. A chegada a Paris leva-a ao seu momento mais decadente e humilhante, mas aprende depressa a definir regras no meio da degradação que, no fundo, se torna em apenas mais uma escolha.


Se Pobres Criaturas funciona tão bem, muito se deve à extraordinária ligação entre Emma StoneYorgos Lanthimos. A actriz encarna a evolução da personagem com total confiança no realizador. Expõe-se física e emocionalmente, experimenta emoções, movimentos e trejeitos incomuns, transfigura-se e supera todas as provas com distinção. O talento de Stone revela-se na sua plenitude na pele de Bella. E, apesar do principal pecado de Lanthimos ser não saber quando parar e estender-se em devaneios que nada acrescentam, certo é que a protagonista é tão viciante que se poderia continuar a acompanhá-la meses a fio - quem sabe numa série sobre ela?


Esteticamente irrepreensível - e filmado em película -, direcção artística, caracterização, guarda-roupa e fotografia criam um imaginário antiquado-futurista, entre sonho e realidade - mais onírico que realista, efectivamente. Uma realidade, em muitos momentos, surrealista, repleta de elementos cómicos e incómodos - muitos deles fruto das invenções de Godwin Baxter, uma espécie de Dr. Victor Frankenstein ao estilo de Lanthimos -, bem como dramáticos, tudo tão bem conduzido pela provocadora banda sonora, de Jerskin Fendrix.

Destaque para a utilização da lente "olho de peixe" - que Lanthimos tem tornado sua imagem de marca - e a alternância do preto e branco inicial, correspondente aos primeiros tempos da vida de Bella no ambiente controlado da casa de Godwin, passando o filme a ser a cores assim que Bella foge com Duncan, rumo ao desconhecido.


E, se há personagens misóginas, Pobres Criaturas faz-lhes frente e revela ser o seu contrário: é sobre empoderamento feminino, sobre uma Mulher à procura do seu lugar no mundo - e a encontrá-lo.

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