quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Entrevista a Welket Bungué, realizador de Eu não sou Pilatus: "Temos que criar estratégias não somente anti-racistas mas contra racistas"

Welket Bungué é um dos jovens realizadores que tem dado cartas dentro e fora de Portugal. No Doclisboa 2019, foi dele o único filme português na Competição Internacional, Eu não sou Pilatus. A propósito desta curta-metragem, fomos conversar com o artista luso-guineense e assunto não faltou. Falámos de racismo, política, cinema, redes sociais e muito mais. Nada como ler a entrevista, para conhecer melhor o Welket e os seus filmes.

Créditos: Kristin Bethge
Estavas no Rio de Janeiro quando se deu o episódio de violência policial no Bairro da Jamaica - sobre o qual o teu filme, Eu não sou Pilatus, trata. Como reagiste, do outro lado do oceano, ao que se passava em Portugal?
Welket Bungué: Fiquei surpreendido por ver aquelas imagens nas redes sociais, porque já não consumo assiduamente a informação dada pela televisão, vou eu à procura daquilo que me interessa. Isto veio ao meu encontro através de uma prima minha, que tem uma preponderância a ser reactiva nas redes sociais, fazendo lives. Aí, fiquei a saber que tinha havido esta situação de violência policial e fiquei triste por ver que se tratava de uma agressão física a um jovem, mas também à família dele. E, por outro lado, porque aquele bairro, invisibilizado por todos nós, quando é mostrado, é naquelas circunstâncias, pela primeira vez, e qualquer pessoa minimamente atenta percebe que são as diásporas, nomeadamente africanas, que habitam aquele lugar. Senti-me, portanto, na obrigação de desconstruir ou questionar o porquê de aquilo acontecer. A partir daí, tive que guardar o primeiro vídeo e, posteriormente, o segundo.

Eu não sou Pilatus é o teu manifesto. Consideras que seja um filme activista?
Welket Bungué: Sim, Eu não sou Pilatus impõe-se enquanto filme que assume essa demanda activista. É um lugar em que eu não me quero colocar, enquanto artista. Prefiro deixar que as minhas peças se manifestem nesse sentido. Sobretudo, por causa da temática que é retratada no filme, mas, por outro lado, pela técnica, pelo formato do filme enquanto objecto artístico, que vem desconstruir ou questionar alguns paradigmas de concepção, produção, realização e concretização de peças audiovisuais que são consideradas pelos experts como Cinema. Nesse sentido, este filme também traz algum sentido de ruptura e podemos dizer que se apresenta enquanto uma peça que tem essa demanda activista...

Uma palavra um bocadinho forte, talvez, mas...
Welket Bungué: É. (risos)

Que mensagens é que querias passar?
Welket Bungué: As mensagens subjacentes ao filme são principalmente a inconformidade face à violência policial e à desigualdade no quadro do tratamento cívico que é dado à população, que não é só aquela maioritariamente branca, tida como nativa portuguesa. É também uma população composta por minorias étnicas - que já não são os negros africanos, porque não se pode chamar minoria à diáspora africana negra que está aqui em Portugal. Toda esta diversidade cultural que tem chegado do norte de África, por si só, traz um outro tipo de lógica do ponto de vista comunitário, mas também este movimento de cidadãos de proveniência oriental (do Bangladesh, Indianos, Indochineses, Chineses...), que existe e que só conseguimos ter acesso a eles quando vamos às suas lojas, por exemplo, ou quando, a passar por uma rua, sentimos o cheiro da sua gastronomia. É claro que um filme curto não pode abarcar tudo isso, mas apela a uma honestidade cívica, que implica aceitar a diversidade étnico-cultural que o país tem. E visa inocular auditivamente algumas palavras de força que devem ser motrizes para que possamos aceder a essa consciência social e cívica. Sinto que temos que nos confrontar com as nossas diferenças e fazer com que isso seja a paleta de cores que ilustra o nosso país, enquanto um país mais inclusivo e mais conhecedor de si mesmo. Por outro lado, pretendi trazer à luz um filme que não estereotipasse ainda mais um discurso previsível, que poderia, como é o caso, ser proferido por uma pseudo-nacionalista, patriótica, xenófoba, racista. Queria diluir esse discurso, mas que se assumisse essa retórica alienante como sendo um resquício do pensamento colonialista que reside em grande parte dos portugueses. E, para aqueles que podem imiscuir-se da responsabilidade desse discurso dito por esta Júlia do filme, que entendam que, quando o fazem, podem estar a distanciar-se da responsabilidade que nos cabe a todos. É, não só,  repudiar aquilo que estamos a ouvir aquela mulher dizer, mas desnormalizar aquele discurso inconscientemente enraizado em nós. Já os habitantes de lugares precarizados ou marginalizados pela sociedade, como é o caso do Bairro da Jamaica, precisam de se inteirar e perceber onde é que se colocam no meio desta leva. Permitem que sejam tratados assim? Estão mobilizados? Estão informados? Estão organizados para que possam correr atrás daquilo que são os seus direitos enquanto cidadãos portugueses, enquanto cidadãos europeus, enquanto cidadãos africanos a morar na Europa? Há que perceber também como esses lugares estão tão destituídos de direitos e de acessibilidade, ficam ilhados na sua aparente passividade ou conformidade com aquilo que está institucionalizado e estruturalizado pelo sistema vigente.

A respeito disso, na sessão do Doclisboa disseste que muitos dos afrodescendentes que vivem em Portugal não conhecem os seus direitos. Porque achas que tal acontece?
Welket Bungué: Isso acontece porque a máquina mediática, passivamente, contribui para que as coisas assim sejam. Por outro lado, o racismo institucional e estrutural, que está na génese da formação das leis e do modus operandi deste sistema. Não é uma coisa que surja na Modernidade, tem origem no período colonial. As estruturas de poder têm como objectivo dar destaque a determinados perfis da sociedade, a determinados estratos sociais, se virmos isto como uma cadeia hierárquica, os migrantes, os estrangeiros estão no fundo da hierarquia. Todo o processo de legalização é altamente burocratizado para os indivíduos que queiram aceder a esse direito básico, do ponto visto legal, que é a pessoa ter a documentação em dia, ser visto enquanto cidadão, querer que lhe seja permitido o livre-trânsito no lugar onde se encontra. Tudo isso é altamente inacessível, começando pela forma como é explicado e o nível de língua que está associado à descrição de como a pessoa se pode legalizar. Os departamentos fornecem um serviço condicionado do ponto de visto de recursos humanos, insuficientes... O que incentiva a que haja uma negligência e um sentimento de impotência, e faz com que as pessoas - lá está, têm de viver, têm de se manter vivas, quanto mais não seja - tenham então de dar início à clandestinidade, o que implica uma série de receios, quer do ponto de vista de acesso ao direito à saúde, a uma habitação com saneamento básico garantido, a deslocar -se nos transportes públicos ou nos espaços públicos... O que faz com que as pessoas que estejam nessa condição acabem por se aglomerar em lugares onde se sintam mais seguras. São lugares onde encontram outros pares quer estejam na mesma situação ou não, mas que se revejam na mesma etnicidade. Vão sentir-se acolhidos ou reunidos de pessoas com quem podem falar, partilhar angústias e vão sentir-se pertencentes a uma comunidade. O que me fazem chegar de alguns bairros precarizados, que ficam nas margens da cidade de Lisboa, do Porto, dos centros urbanos, são imagens de desumanização, marginalidade e que chegam, sobretudo, quando há uma situação de conflito policial. Sou levado a acreditar que o tipo de fenómeno que ocorre nas áreas periféricas aos centros urbanos acontece porque as pessoas se sentem desamparadas pelo sistema social público. Não é só dizer que os serviços de estrangeiros e fronteiras ou serviço de segurança social português não se esforça para incluir essas pessoas. É preciso repensar como é que a lógica de inclusão é executada e o que está disposta a fazer para que essas pessoas se sintam incluídas e  empoderadas, do ponto de vista da soberania da sua existência e intervenção, socialmente falando.

Créditos: Burhan Qurbani
Cresceste no Alentejo. Sentiste algum estigma?
Welket Bungué: Posso dizer que fui privilegiado no sentido da educação que tive. Como cresci num internato, chamado Casa do Estudante, havia crianças de todas as origens e perfis familiares. Nós criamos ali uma irmandade, circulávamos todos juntos naquela cidade de brandos costumes [Beja]. Aí, não posso dizer que tenha sentido o racismo, no seu aspecto mais grotesco, porque não éramos vistos como branco ou preto, éramos vistos como os miúdos da Casa do Estudante. Havia crianças que tinham sido retiradas às suas famílias porque os pais tinham problemas, judiciais ou não, mas também havia alunos que tinham conseguido entrar porque os pais tinham de se ausentar do país, ou tiveram que abandonar o país subitamente e essas crianças já estavam encaminhadas, do ponto de vista de formação escolar, ou os pais estavam a enfrentar uma situação de divórcio e eram acolhidas pela instituição. Isso moldou muito a minha maneira de observar. Não senti que nos fosse imputado algum tipo de diferenciação. Mas depois, ao voltar para casa, nas férias, primeiro morávamos na Ramada, Odivelas, e foi aí que crescemos até aos 12 anos. Depois mudámos para Camarate. Ambas as localidades correspondem a uma área suburbana, circundante ao centro, o que caracteriza muito esses lugares, pela acessibilidade e pelo estrato social que aí habita. Consoante fui crescendo - e também porque comecei a fazer teatro com 15 anos -, já fui observando esses lugares com alguma crítica, porque percebia que a acessibilidade, o conforto e o trato com as pessoas era diferente daquele que havia em Beja, não só por Beja ser uma outra região do país, mas também por lá estarmos no centro da cidade. Porque, nas zonas periféricas à cidade de Beja, o comportamento das pessoas era muito similar àquele que eu via em quem morava nas zonas periféricas aqui em Lisboa. A partir daí, comecei a interessar-me sobre porque é que as pessoas agiam daquela maneira e quais eram as responsabilidades das autarquias, em relação ao conforto e às condições de vida daquelas pessoas. Fui entendendo que o facto de ter crescido em Beja, numa instituição que tem o apoio do Estado português, fez com que tivesse uma protecção diferente daquela que os jovens que viviam em Odivelas ou Camarate tinham. Isso fazia com que eles tivessem um determinado tipo de comportamento, que as suas carências fossem diferentes das que tive na minha adolescência. Reflecti também sobre a minha estrutura familiar. O meu pai morreu muito cedo, eu tinha 14 anos. Ele viajou muito e formou-se, era Engenheiro Florestal, e quando morreu estava a estudar Direito. Foi um ex-combatente do ultramar, do lado dos portugueses, era uma pessoa instruída, civicamente bem estruturado, também escreveu poesia... O meu pai, as poucas vezes que esteve connosco em vida, porque estava sempre a viajar, deu-nos uma formação, educou-nos. E a minha mãe também, à sua maneira, e o colégio também, à maneira portuguesa. Ao fim e ao cabo, era o que o meu pai pretendia, por isso é que nos mandou para o colégio. Depois de equacionar todas essas informações, olhei para a minha família, a fim de entender o que é ser-se uma família migrante. Quais é que são as lacunas que aquelas pessoas têm, do ponto de vista social? A partir dai, comecei - num sentido de me questionar a mim mesmo e de questionar este sistema do qual fazemos parte - a fazer filmes sobre a realidade social. Este filme surge como uma peça, de um ponto de vista formal, diferente, mas os outros filmes que faço visam justamente tentar encontrar um enquadramento que desconstrua o paradigma dessas comunidades das áreas periféricas da cidade. O facto de eu ter ido para o Brasil contribuiu ainda mais para aprofundar este questionamento. Aí, desloco-me para o lugar de uma pessoa negra, portuguesa, ocidentalizada, que está no Brasil à procura de qualquer coisa. Lugar esse onde a discussão que questiona o lugar do negro brasileiro já está muito mais desenvolvida do que aqui, porque os negros brasileiros ou negras brasileiras compõem mais de 50 por cento daquilo que é o tecido social no Brasil. Aqui em Portugal, como não nos é permitido ter acesso a esses dados estatísticos, não podemos discutir baseando-nos nessa informação.

Sim, fica-se muito ofendido quando se perguntam etnias, mas depois não conseguimos fazer contabilizações de nada...
Welket Bungué: E não há nada mais colonizante que esse aspecto. Não sabendo quantos somos, não sabemos como é que nos podemos organizar e a que aglomerados comunitários é que podemos aceder para tentar estruturar aquilo que são os nossos interesses enquanto comunidade afrodiaspórica a viver aqui. A forma que encontrei para discutir e levar essas problemáticas para fora de Portugal é fazendo cinema e traduzindo os filmes, para que as pessoas lá fora possam ver e entender o que se passa aqui.

Tens mostrado os teus filmes em escolas?
Welket Bungué: Já mostrei, já me investi a sugerir algumas mostras, nomeadamente na junta de freguesia de Camarate, ou noutros lugares inusitados - que não tenham sido projectados para mostrar filmes -, mas depois percebi que isso é algo que surgirá com o tempo e que será solicitado pelos agentes ligados à educação (professores, técnicos sociais...) porque eu sou um artista e trabalho com vários medias. Trabalho com cinema, performance, literatura, e este seria um campo de operacionalidade que me tiraria tempo útil. Os filmes estão a ser feitos, estão a ser submetidos a festivais. Essa malta tem de aparecer, falar comigo e dizer: "Estou a leccionar num determinado lugar e acho que estes filmes teriam cabimento e pertinência para serem apresentados".

Mas algumas pessoas ouvem "cinema português" e fogem a correr...
Welket Bungué: Mas atenção: Isto é um cinema multicultural. Eu tenho influência brasileira, europeia, portuguesa e africana, no sentido lato do termo. O facto de estar na Competição Internacional do Doclisboa reflecte isso, que é um filme que não corresponde ao estigma que existe em relação ao cinema português. Eu pretendo fazer um cinema que se sobreponha à convenção daquilo que é o cinema português, até porque comecei a fazer cinema não acreditando nessa categorização. Fiz os filmes a pensar que deveriam ser mostrados em festivais brasileiros ou de países africanos falantes de língua portuguesa. Acabaram por chegar aqui porque "água mole em pedra dura tanto bate até que fura". Nas primeiras entrevistas que dei, categorizaram-me como cinema negro, que é mais fácil tipificarem a coisa dessa maneira, e não enquanto cinema português - é claro que agora [a imprensa] vai, cada vez mais, assumindo isso. Os meus filmes estiveram a representar Portugal em festivais internacionais - estiveram em Zanzibar, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, em vários festivais brasileiros, onde não havia um único filme português - e eles [imprensa] não foram lá fazer cobertura mediática. Eu já estava preparado para isto, por isso é que expandi o público-alvo e comecei a conceber filmes muitas vezes falados em português do Brasil, porque é mais acessível para os cerca de 205 milhões de habitantes brasileiros, mas também é uma língua inteligível para toda a africanidade que fala português. Naturalmente, o circuito de festivais português tem vindo a ter cada vez mais interesse nestes trabalhos. É uma coisa tipicamente portuguesa: deixar que as coisas ganhem uma reputação, que sejam dignas de apreciação por parte das estruturas internacionais e só depois é que se abraça aqui a coisa.

E voltando um pouco atrás, como surgiu a opção de trabalhares com vídeos que se tornaram virais? E como chegaste ao vídeo da Júlia?
Welket Bungué: O vídeo da Júlia, à semelhança do vídeo passado no Bairro da Jamaica, aparece-me através dessa minha prima muito activa e reaccionária nas redes sociais. Depois de mostrar o vídeo do Bairro da Jamaica, ela incentiva o pessoal a sua rede de amigos do Facebook a ir à manifestação da Avenida da Liberdade. Após a manifestação, este vídeo vai parar às redes, ela vê e, indignada, partilha-o a contar o que se passou. Quando vejo este vídeo, já prevendo que fosse ser censurado ou apagado de um momento para o outro, fiz logo o download. E isso também fortaleceu a minha ideia de criar um filme-manifesto, que viesse trazer ao de cima a minha inconformidade e indignação perante esta situação.


O que te motivou ou inspirou para as distorções do som?
Welket Bungué: Há aqui uma coisa importante: este filme não tem nenhum som acrescentado. Toda a sonoplastia é uma desconstrução que eu faço, acelerando ou relentando as vozes ou os ruídos. Mesmo aquele som sombrio, que parece a voz de um monstro, é a distorção que faço da voz da Júlia. Da mesma maneira que o loop imagético, a repetição das frases, era um aspecto que visava reforçar algumas palavras de força, mas também diluir o discurso individual, para um discurso mais colectivo. O som serviu para desconstruir, apelando ao distanciamento em relação ao discurso e em relação à imagem, para que nos parecesse uma coisa surreal, maquinal, artificial, sintetizada, daquilo que é a voz de origem humana ou, neste caso, de uma mulher branca portuguesa alienada.

E o que é que podemos fazer para mudarmos esta situação e também não sermos Pilatus?
Welket Bungué: Essa deveria ser a questão que nós, individualmente, nos devíamos colocar. Não ser Pilatus significa não nos imiscuirmos da responsabilidade de intervir activamente nesta que é uma ideia de construção de uma portugalidade muticultural. Esta Nova Lisboa, que o Dino D'Santiago canta e eleva, é esta nova Lisboa, este novo portugal que, apesar de estar aqui há muito tempo, deve ser assumido e incorporado pelos seus habitantes. Isso implica que estejam atentos ao que está a acontecer do ponto de vista social. A nova configuração da Assembleia da República é algo que traz um chamativo face à transformação que se vivencia neste momento. Estamos geograficamente posicionados no limite da Europa. Do ponto de vista mítico, Portugal apresenta-se como um país que teve que viajar para alargar os seus horizontes e as suas fronteiras geográficas... Findada essa campanha de usurpação de territórios além fronteiras e consequente retorno ao país, também a visitação desses povos acaba por surgir. Porque é que não há uma formação de cidadania por parte do programa educacional, para que se apaguem todas as falsidades que foram trazidas na idade moderna para Portugal? O regime Salazarista procurou trazer a ideia de um novo mito nacional de lusitanidade que tem de ser desconstruído, para que todos - sobretudo os que vivem nessa ideia de que a colonização foi uma coisa construtiva e benéfica para os povos africanos -, abandonem essa ideia alienante e comecem a ver como é que a História foi e continua a ser reproduzida em Portugal, relativamente ao passado colonial. O filme funciona como uma peça que, quando aprofundado, pretende despertar as pessoas para a responsabilidade que têm no que toca às repercussões do pensamento colonialista, do racismo institucional, do racismo estrutural mas, sobretudo, do racismo culturalista que está vigente no que chamamos agora de nacionalismo ou patriotismo. O racismo culturalista faz com que não aceitemos a diversidade cultural que o país tem e que passemos a investir numa ideia do que é ser-se português nativo, legítimo, sobretudo pela questão a cor, ao contrário de se dizer que se é português pela cultura que se abraçou. Nós temos muitos negros afrodescendentes, que nasceram aqui e já não sabem ser outra coisa que não portugueses e isso é algo que a sociedade e os órgãos de comunicação têm que assumir. Significa diversificarem os pivots dos telejornais, modificarem as pessoas chamadas a exercer o direito opinativo, fazerem com que o júri de instituições que atribuem financiamento a peças artísticas ou filmes não seja simplesmente configurado por pessoas brancas, heteronormativas.

O racismo é crime mas parece que muitos o encaram como se fosse apenas uma questão de opinião. Concordas que a melhor forma de combatê-lo é expondo os comportamentos racistas numa espécie de confrontação?
Welket Bungué: Eu acredito que, fazendo uso das palavras de Grada Kilomba, o racismo não é biológico, ele é discursivo. É justamente no discurso que é proferido ou conscientemente representado que o racismo ganha vida. Temos que criar estratégias não somente anti-racistas mas contra racistas e isso implica fazermos o exercício de perceber quando é que estamos a agir baseando-nos no preconceito racial ou racializante. O que faz com que tomemos determinadas opções que favorecem um perfil? Porque eu acho que o racismo actua, primeiro, em questões de género e depois sim chega às questões da cor. Depois da cor, vai para as questões culturais. Porque o racismo de hoje não é igual ao racismo como nós o entendemos na sua génese. Agora, opera pela questão da cultura, daí eu falar do racismo culturalista, que é dizermos "somos todos portugueses, mas tu não podes ser português porque não tens um nome português, ou porque não sabes qual é a raiz de um cozido à portuguesa, ou porque não te vestes como aquilo que é o código de vestimenta de um português, ou porque não falas a nossa língua com o sotaque que é tido como genuinamente português...". Até aqui não falamos de questões de cor, mas meramente culturais e que são mesquinhices. Só que, perversamente, transformado numa ideia de nacionalismo patriótico, os que não abraçam fervorosamente ou não se revêem, enquanto representação da sua individualidade, nestes parâmetros são convidados, automaticamente, a colocarem-se num lugar onde não se possam rever enquanto portugueses. Para quem não está por dentro, isto pode parecer altamente complexo. Por isso é que nós, no dia-a-dia, quando nos aproximamos de alguém que, pela cor, entendemos que não é branco e que também não é português, mesmo perguntando "de onde é que és?"; e ele responda "sou português, nasci aqui""sim mas és originariamente de onde?", temos que anexar esta questão. E isso é uma forma de exercer racismo e é aí que temos de entender como é que agimos. Porque para muitas pessoas isto não é sintoma de racialização do outro, mas é! Porque nós, à partida, estamos a desconsiderar a possibilidade de que pode haver portugueses negros, amarelos, verdes ou brancos. O exercício é complexo mas passa por nos autoavaliarmos e repensarmos o que é a nossa ideia de ser-se racista. Se conseguirmos percepcionar como é que o racismo opera hoje em dia, iremos entender que, maioritariamente, agimos baseados numa ideia de privilégio ou de supremacia racial em relação aos outros, mas já não tem tanto a ver com a cor e sim com a cultura na qual nos enquadramos.

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