segunda-feira, 1 de junho de 2020

O que queres ser quando fores grande, Cinema Português?

"O que queres ser quando fores grande?", provavelmente, é uma das perguntas mais repetidas ao longo da nossa infância e juventude. A Inês, lembra-se que, pelos sete anos, respondia: "Professora" - como todas as suas colegas. Depois passou-lhe, e pelos 12 já respondia jornalista e, claro, detective ou espia. Certamente andava a ver muitos filmes, mas, afinal, deveria ter o seu quê de verdade ou não estaria ela agora aqui a escrever sobre isso mesmo: cinema. Então e se colocássemos essa mesma pergunta ao cinema português, qual amigo de brincadeiras, colega de escola, companheiro para a vida?


Facilmente se traça o seu percurso a partir das crianças e jovens que conhecemos nos filmes lusos e que o personificam. Aniki Bobó (1942), de Manoel de Oliveira (ele, sim, foi muito grande e realizou filmes até aos 106 anos), faz o Cinema brincar nas ruas do Porto, como o Carlitos e amigos, sem preocupações, embarcando em aventuras, no primeiro amor, em brincadeiras e desafios com os amigos. O Cinema na escola primária, tal como nós, vê o mundo cor-de-rosa e o futuro como algo muito distante. Uns anos mais tarde, crescemos e olhamos para Adeus, Pai (1996), de Luís Filipe Rocha, onde a criatividade atinge o seu auge, as descobertas sucedem-se, crescemos depressa, as emoções estão à flor da pele e o futuro vai-se construindo, bem como a personalidade. E, tal como o Filipe do filme, sonhamos, inventamos as mais extraordinárias aventuras - e viagens aos Açores - e podemos ainda não saber o que queremos ser, mas já temos muitas certezas do que não queremos: e um pai ausente é uma delas. E nesta "idade do armário", a adolescência, a família assume um papel fundamental. 


O Cinema Português, enquanto "pessoa", reflecte isso mesmo numa juventude problemática com Jaime (1999), de António-Pedro Vasconcelos, Rafa (2012) e Montanha (2015) - ou digo antes, David, o seu protagonista? - , de João Salaviza (uma das revelações da realização da actualidade). Os três rapazes têm algo em comum: assumem-se como o homem da casa, têm uma mãe distante ou irresponsável (mas preocupam-se com ela e colocam-na à frente de tudo) e um pai ausente, irmãs ao seu cuidado, vivem em bairros pobres ou problemáticos. Não contam com mais ninguém, apenas com um amigo, nos casos de David e Jaime. Rebeldes, protectores, desencantados, perdidos, solitários, assim estão os três jovens. E enquanto David e Rafa - que por acaso até são amigos, em Montanha -, optam pelos pequenos furtos, em Lisboa, Jaime trabalha em todos os biscates que arranja na cidade invicta e não tem medo de nada. Ora aqui está o nosso cinema adolescente. Aquele que, ao perguntarem pelo futuro, responderia: "Eu nunca pensei no meu futuro", tal como David confessa à professora. O Cinema Português foi rebelde, como cada um de nós. Ou alguém nega que faltou à escola para grandes jornadas com os amigos ou foi para a rua nas aulas por desafiar os professores?


Quando damos por nós, já somos quase adultos, somos "grandes". Imaginávamo-nos assim quando éramos mais novos? Talvez não, talvez sim, talvez tudo tenha resultado das atitudes anteriores. Zona J (1998), de Leonel Vieira, e Os Mutantes (1998), de Teresa Villaverde, são as respostas imediatas que recebemos. O Cinema Português encarna novamente o caminho mais triste, mais difícil - mas a vida não é feita de facilidades. Num bairro de Chelas, ele é e é Carla, e poderia ser também todos os seus amigos, mas, neste caso, e depois de muitas provações, parece escolher o amor à violência, com muito sofrimento e decisões erradas à mistura. Já quando personifica Os Mutantes, desdobra-se em Andreia, Pedro e Ricardo, meninos de rua, internados em instituições sociais das quais só querem fugir, qual prisão, eles só querem liberdade. Qualquer um dos três poderia ser uma versão mais velha de Jaime, David e Rafa, oriundos de famílias disfuncionais, abandonados à sua sorte. Curiosamente, os filmes de Vieira e Villaverde são do mesmo ano e têm em comum uma temática: a gravidez na adolescência, com duas formas bem diferentes de lidar com ela. Mais uma vez, são decisões como esta que fazem o nosso futuro.


E depois de viver tantos anos à margem da sociedade, o Cinema Português também quer ser feliz. Viaja então até à Sertã, no Verão, para personificar Miguel e Isabel de O Primeiro Verão (2014), do realizador estreante Adriano Mendes. É ali, junto da Natureza, que nasce a história de amor dos dois, que se conhecem numa aula de condução. Estamos crescidos. Tiramos a carta, começamos a viver sozinhos, como Miguel, trabalhamos no super mercado e ajudamos a mãe no restaurante para juntar uns trocos como a Isabel, para conseguir o que sonhámos secretamente todos estes anos alcançar. Com a ingenuidade que ainda nos resta, desenvolvemos este amor que podia ser de Verão, é verdade, mas que pode construir-se ao longo de muitas outras estações.

Chame-se Carlitos, Filipe, Jaime, Rafa, David, , Carla, Andreia, Pedro, Ricardo, Miguel ou Isabel, seja de Lisboa, Porto, Sertã, Angra do Heroísmo, ou de qualquer outra região, o Cinema Português é igual a cada um de nós. Constrói a sua personalidade desde a infância, questiona a sua vida, passado, presente e futuro, sofre, sorri, cai e levanta-se. Caminha para a solução da "adivinha" inicial. Porque, afinal, a resposta é simples: "Quando for grande quero ser feliz".


*Texto publicado originalmente na Revista Gerador #7, de Janeiro a Março de 2016.

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