quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Crítica: A Herdade / The Domain (2019)

"Roubou-me metade da minha vida, já não me rouba mais nada".
Leonor


*8/10*

Os campos alentejanos, a política do Estado Novo e personagens intensas juntam-se para contar a história de uma família portuguesa em A Herdade. Se fosse um livro, A Herdade poderia ter sido escrito por alguém que fundisse o crítico Eça de Queirós e o apaixonado Camilo Castelo BrancoRui Cardoso Martins escreveu o guião, posteriormente alterado por Tiago Guedes, e ainda com algumas ideias de Gilles Taurand, que resulta numa história contada a três tempos.

O filme de Tiago Guedes tem uma dimensão pouco usual no cinema português. É um drama histórico, que se pode confundir, por vezes, com uma novela - das boas -, e cujo visual ficará na memória, qual quadro em movimento.


A Herdade apresenta-nos a uma família proprietária de um dos maiores latifúndios da Europa, na margem sul do rio Tejo, e leva-nos a mergulhar nos segredos da sua herdade, fazendo o retrato da vida histórica, política, social e financeira de Portugal, dos anos 40, atravessando a Revolução do 25 de Abril, até aos anos 90.

O homem rico e poderoso está habituado a dominar, ser dono e senhor das suas terras, mais ainda em tempos de ditadura. João, contudo, não é um patrão insensível e distante, bem pelo contrário, ele não quer saber de política e tem uma estreita relação com os seus trabalhadores. Na sua herdade, a lei que impera não é bem a mesma que no resto do território nacional. Já dentro das portas da sua casa, ele mantém a frieza e brusquidão com que foi educado pelo seu pai - que a primeira cena do filme, ainda antes do título surgir, nos demonstra com crueldade - e não admite a fraqueza.


João é um homem frio, poderoso, intransigente, de amores fugazes e opiniões sólidas. Albano Jerónimo é capaz de encarná-lo com dignidade, com uma sensualidade que contrasta com a sua rudez. Ao seu lado, Sandra Faleiro é a maior estrela do filme. Os seus cabelos loiros, olhos azuis, pele clara, de ar angelical, nórdico e frágil, compõem uma mulher muito mais forte e firme do que aparenta. Leonor sofre em silêncio mas não se deixa rebaixar em momento algum, acomoda-se mas não se deixa humilhar, é independente, apesar do marido infiel e do pai general da PIDE. Os seus olhos dizem muito mais do que qualquer palavra.

O tom novelesco que percorre esta história não incomoda, pelo menos até à chegada dos anos 90 em que o socio-político que até então dominava a narrativa muda o foco para a tragédia familiar. Os filhos já são adultos e não há espaço para as suas personalidades crescerem tanto como os seus corpos. Miguel - um intenso João Pedro Mamede - ganha protagonismo e a importância que sempre espreitou atrás das portas ao longo do filme; mas não chega para conquistar a plateia da mesma maneira que os seus pais já conseguiram.


Elementos fundamentais e simbólicos surgem em A Herdade, quase como parte dos protagonistas. Os cavalos de João, com quem parece ter uma relação mais próxima que com a própria família; o vento, omnipresente naqueles campos a perder de vista; o sótão dos que não querem ser encontrados; a vedação onde Miguel encontra alguma liberdade, tal como o pequeno forte em ruínas onde João se refugiava em criança; a árvore que desde o início é quase um membro da família...

Um dos mais marcantes momentos do filme de Tiago Guedes coincide com o 25 de Abril de 1974. Imagens e som de arquivo entram em cena para contar a História. Testemunhamos a revolução a nascer lá fora mas não dentro daquela casa.


Tecnicamente, A Herdade consegue proporcionar-nos imagens inesquecíveis através da direcção de fotografia de João Lança Morais (que joga da melhor forma com luz e escuridão, adequando-as através dos tempos), entre planos sequência memoráveis (o do baile, com cerca de oito minutos, não escapará a ninguém), o simbolismo das personagens que surgem nas sombras ou os planos filmados junto à árvore ao longo dos tempos. Os silêncios são trabalhados de forma eficaz pela equipa de som que merece igualmente destaque.

A Herdade é quase um épico do cinema português e Tiago Guedes teve a coragem de assumir as rédeas de um projecto de grande dimensão, quer no elenco, responsabilidade histórica, duração (166 minutos) e beleza estética. Cada personagem é toldada pela infância que teve. João, com todos os seus fantasmas e vícios, só quer salvar o património da família e manter o poder que sempre julgou seu de direito.

1 comentário:

Jorge Máximo Heitor disse...

Estou a ler com muito atenção todas as críticas e análises do filme "A Herdade", que ontem fui viver e do qual saí uns 55 minutos antes do fim, por me parecer que estava a ser demasiado longo, eu que tenho tão pouca paciência para estar duas horas sentado num cinema. A fotografia é muito boa; e o elenco também, mas no cômputo geral há algo que falta. Trata-se de um trabalho respeitável, mas não atinge a genialidade.