sábado, 7 de novembro de 2020

Entrevista: Marta Pessoa, realizadora de Donzela Guerreira

Donzela Guerreira, de Marta Pessoa, estreou no dia 5 de Novembro nas salas de cinema portuguesas. Através da protagonista Emília, jornalista e escritora, o filme guia-nos por uma Lisboa dos anos 50 e por histórias de mulheres desse tempo. A propósito da estreia, quisemos saber mais sobre esta longa-metragem e a realizadora Marta Pessoa satisfez a nossa curiosidade.

Marta Pessoa

Como surgiu a ideia para este filme?

Marta Pessoa: O filme teve origem na história da Donzela Que Vai à Guerra, que está incluída no Romanceiro de Almeida Garrett. Neste poema de origem popular a “donzela” assume o lugar do pai no campo de batalha. Vestida de soldado, vai à luta. É uma história de alguém que se quer superar, quebrar barreiras. Esta história levou-me a pensar que, ao contrário do que se passava na história de Garrett, às mulheres que viveram no período do Estado Novo, não lhes era permitido grande individualidade. Eram invisíveis, sem voz, sem acção. Assim são as personagens dos livros de Maria Judite de Carvalho e de Irene Lisboa. Estas duas escritoras foram as grandes fontes de inspiração para o filme. A sua escrita, muito próxima da “crónica do quotidiano”, transforma as mulheres de vidas apagadas, de gestos menores, condenadas a uma domesticidade inevitável, em protagonistas. Juntando a história da “Donzela” ao universo destas mulheres sem voz, surgiu a ideia para este filme. Um filme sobre uma mulher que escreve, que não se casa, que é, em plena ditadura, uma transgressora. Mas ao contrário da mulher do Romanceiro, esta é uma mulher que ocupa o espaço dos homens sem se travestir. Alguém cuja ousadia está em não deixar de ser quem é. E assim nasceu a protagonista, a Emília Monforte, uma escritora, na Lisboa dos anos 1950.


Qual é para si a importância do Arquivo para a memória de uma cidade (ou de uma pessoa) e para o cinema?

Marta Pessoa: A transmissão da memória colectiva passa necessariamente por alguma espécie de arquivo. Por mais pequenos que sejam e por mais maltratados que possam ter sido, os arquivos são esforços de preservação daquilo que consideramos importante. Mesmo os nossos arquivos pessoais, aquilo que vamos guardando, vêm da nossa vontade de acarinhar um tempo, uma pessoa, um sítio. São colecções de fragmentos a que, muito tempo depois de nós, alguém poderá tentar encontrar um sentido.  Uma cidade só pode existir se tiver uma memória, porque é qualquer coisa - uma ideia - vivida em conjunto. A memória das cidades é o que alimenta a nossa ligação com elas, mas é também uma forma de as vivermos. No filme, é o arquivo de carácter fotográfico e cinematográfico que é usado para evocar a cidade de Lisboa. Como todo o trabalho que é feito sobre o arquivo, há muito espaço para a aprendizagem, para a descoberta, mas também para a efabulação. As imagens foram encontradas no Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa e no Arquivo da Gulbenkian, as imagens em movimento no Arquivo do ANIM. Estas imagens têm aquele efeito óbvio de nos transportar para um espaço e um tempo, que pode ser simultaneamente familiar e estranho. Já o cinema tem em si mesmo uma dimensão de arquivo, de memória e efabulação do mundo.

Arquivo Fundação Gulbenkian. Rossio (s/data)


Quais as descobertas mais inesperadas que fez nos Arquivos que consultou durante a pesquisa para Donzela Guerreira?

Marta Pessoa: A dada altura, apercebi-me da existência de um conjunto de imagens que remetem para a construção do quotidiano, para uma vivência de domesticidade. Isto acontece mais no arquivo da Gulbenkian. Ambos os arquivos fotográficos estão, em parte, digitalizados e disponíveis para consulta online. Isso é muito importante, essa disponibilidade, porque faz com que a relação com as imagens na fase de pesquisa seja muito mais intensa e constante. No meu caso, disponibilidade para o arquivo ser trabalhado a par da escrita do argumento. Na Gulbenkian, está disponível parte do acervo do Estúdio Novais, e este está dividido em álbuns com nomes como Estabelecimentos Comerciais, Interiores, Edifícios, imóveis e infraestruturas, Mobiliário, Lavores, Comércio, Lisboa e arredores. Isto indica que o Estúdio dividiu a sua actividade entre uma fotografia mais comercial e institucional e encomendas para publicidade. É neste último “grupo” que surgem as lojas de mobiliário, de loiças, de electrodomésticos. Estas fotografias foram as mais surpreendentes e estão muito presentes no filme. Há também, e isto acontece nos dois arquivos, imagens muito belas da cidade. Mas que Lisboa é uma cidade muito bela não é para mim, como lisboeta, uma novidade. 


Como se deu a escolha das três actrizes (Anabela Brígida, Joana Bárcia e Dina Félix da Costa)? O que procurava, em especial, na actriz protagonista?

Marta Pessoa: Já tinha trabalhado com a Dina e com a Anabela. Neste filme, os papéis foram escritos para elas. São, as duas, actrizes muito disponíveis e muito sensíveis. Sabia que seriam capazes de compreender que o filme não teria uma estrutura, nem um processo de filmagem, ditos clássicos e que, sendo um filme de baixo orçamento, as coisas teriam de ser feitas a um ritmo incerto e com uma estrutura muito reduzida. Correu muito bem. No caso da Joana, foi diferente. A Joana é uma actriz excepcional. Nunca tinha trabalhado com ela, mas a Etelvina foi escrita com ela em mente. O convite foi feito e a Joana aceitou.

Ainda em matéria de escolhas, a protagonista do filme é uma voz que se ouve durante todo o filme, e eu acho que a Anabela tem uma voz muito bonita, capaz de dar a cada frase uma entoação muito subtil em todas as emoções e tem uma grande paciência para trabalhar o texto, o que veio a acontecer durante o período de um ano. Para além do texto era preciso que a Emília, quando aparecesse na imagem, tivesse uma presença muito serena, contida, mas forte. A Anabela é uma actriz que consegue tudo isto, e muito mais.

Joana Bárcia como Etelvina


O papel das mulheres está em grande foco no seu filme, especialmente, o das mulheres independentes e solteiras. É uma forma de redescobri-las, já que durante o Estado Novo elas eram quase como um acessório dos maridos e a própria sociedade fazia por esquecer as mais emancipadas?

Marta Pessoa: Foi isso que aconteceu durante o período de ditadura. Não sei se a sociedade esquecia as mais emancipadas, acho que mais do que esquecê-las, as ostracizava e humilhava. O que aconteceu, por exemplo, a mulheres como a Irene Lisboa, foi certamente um processo de esquecimento, mas também de humilhação. Afastaram-na da sua profissão, alguns dos seus livros só foram publicados em edições da própria autora. Outras vezes, as mulheres eram remetidas para “guetos femininos” onde só se podiam dedicar a actividades que o Estado Novo considerava apropriados. O lugar da mulher era definido pelo Estado (logo, pelo homem). Uma humilhação. Era muito habitual este afastamento da vida pública. No caso das mulheres do filme, fala-se ainda de outras – das mulheres sem história - das criadas, das empregadas de balcão (as tais mulheres sem aliança). Espero que de alguma maneira o filme possa levar mais pessoas a ler a obra de Maria Judite de Carvalho e de Irene Lisboa, porque a obra delas resgata estas mulheres do esquecimento. E esse é um gesto importante, o de dar espaço ao que não é dominante.  

A arte (literatura, cinema, pintura) está muito presente em Donzela Guerreira - desde logo na protagonista, escritora e jornalista. O que pretendia transmitir com esta representação?

Marta Pessoa: A literatura é, sem dúvida, a base do filme. A protagonista é uma escritora e é na sua voz que “ouvimos” o filme, a sua escrita. Não são só as suas memórias que ela nos vai contando ao longo do filme, é todo o seu percurso até se descobrir enquanto escritora. Achei que a melhor forma de o fazer seria evocar objectos, imagens, filmes, com que Emília se pudesse ter cruzado. Bilhetes de teatro, bibelots numa vitrine, como se estivesse num museu, filmes que poderia ter visto (como é o caso de Lisboa, Crónica Anedótica, de Leitão de Barros), músicas que ouviria. As Meninas de Velasquez aparece no filme fazendo uma ligação da pintura com o espaço privado através de uma apropriação das personagens nele representadas pela mãe da própria Emília. A mãe ensina Emília a rever-se naquele quadro, aparentemente tão distante da sua realidade. É uma forma de ensinar o processo de criação de uma história. É como se a mãe lhe atribuísse a função ou o desígnio de escritora mesmo antes de morrer. A revelação da arte. Um momento de partilha íntima e de comunhão entre uma filha e uma mãe, entre a realidade e a fábula, entre o efémero e o eterno.

Há uma nostalgia latente em Donzela Guerreira. São saudades de uma cidade aos poucos desaparecida ou das suas mulheres de armas?

Marta Pessoa: Lisboa é uma cidade em constante transformação, em constante desaparecimento. Acho que a cidade do filme é uma Lisboa que ainda hoje conseguimos reconhecer e identificar como nossa, mesmo que os edifícios, as ruas, as praças, já não existam exactamente da mesma forma. Cada prédio que vai abaixo dói, mas se calhar no lugar desses prédios já existiram outros prédios que foram abaixo e que “doeram” aos lisboetas nossos antepassados. E há sempre o rio. Enquanto o Tejo estiver (mais ou menos) no mesmo sítio, teremos sempre Lisboa.

As mulheres de armas continuam a andar por aí, porque continuam a ter que lutar por muitos direitos. São, felizmente, mais visíveis, com mais voz, mais liberdade, que as mulheres dos anos 1950. Mal de nós se assim não fosse.

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