*9/10*
Desde que foi condenado, em 2010, a seis anos de prisão e a uma proibição de 20 anos de exercer actividades cinematográficas, que a filmografia de Jafar Panahi espelha o seu estado de espírito - e cresce a olhos vistos. Em 2011, Isto Não É um Filme foi uma leve provocação à sentença que lhe calhou, e retratava o cineasta em prisão domiciliária, na companhia da sua iguana de estimação, e do realizador Mojtaba Mirtahmasb. Juntos, pretendiam mostrar o poder do cinema contra a repressão e liberdade de expressão. Em 2013, Closed Curtain foi uma espécie de grito de desespero de Panahi, um murro no estômago também para o público. Em Taxi (2015), começaram as suas "aventuras" pelas ruas de Teerão numa docuficção onde Panahi interpreta um taxista. Já Três Rostos e Ursos Não Há são duas incursões noutros territórios, com o realizador a interpretar-se a si mesmo na acção.
Foi Só Um Acidente é filmado depois de, em 2022, as autoridades iranianas terem voltado a prender Jafar Panahi durante sete meses, até este ter feito uma greve de fome e pago uma caução. A revolta está espelhada na longa-metragem, criada a partir de várias conversas com outros reclusos do regime iraniano, e que se revela bastante diferente das suas antecessoras.
"Eghbal viaja de carro com a mulher grávida quando atropela e mata um cão. Encalhado na estrada, procura ajuda na garagem de Vahid, sem saber que o seu salvador acredita que é ele o agente prisional que o torturou."
O pânico que toma conta de Vahid ao reconhecer a voz e os passos de Eghbal rapidamente se transforma num insaciável desejo de vingança: mas sem nunca lhe ter visto a cara durante o tempo em que esteve preso, as dúvidas começam a assolá-lo. E é a partir daí que se entra numa espécie de road movie rumo à mais justa vingança possível. E eis que entram em cena outros antigos presos políticos, submetidos a torturas arrepiantes pela mão do mesmo homem. Pagar na mesma moeda a quem lhes arruinou a vida pode não ser a decisão mais ética, mas aqui o que importa é não se vingarem do homem errado.
O conflito moral é o motor de Foi Só Um Acidente e Jafar Panahi sabe como adensá-lo até ao extremo, desde logo ao começar por humanizar o possível torturador na primeira cena, mostrando a sua família: uma filha pequena e a mulher grávida.
Este é, sem dúvida, o filme mais violento do realizador iraniano. Pouco gráfico, mas muito agressivo nas palavras e ideias. Os horrores relembrados pelos antigos presos políticos, representados pelos vários actores, e todas as formas de exteriorizar a raiva e o ódio que sentem são uma arma para desafiar o sistema doentio onde sobrevivem.
Filmado em segredo, a grande maioria das cenas de Foi Só Um Acidente são rodadas em zonas isoladas ou de dentro da carrinha - ela própria testemunha de todos os pecados ou arrependimentos das personagens. Este secretismo estende-se da realidade à ficção, e a tensão passa para o outro lado do ecrã, que assiste também impassível a todas as injustiças cometidas pelo regime iraniano.
E no meio deste drama violento, há momentos de humor que não fazem desaparecer a aura pesada de Foi Só Um Acidente, mas recordam que continua a ser Panahi atrás da câmara. Sente-se brutalmente a sua revolta e desilusão com o país que ama, mas é sempre o seu coração pacificador a tomar as rédeas. Uma lição de vida para todos que o assistam.






















